A música entre o visível e o audível

Daniel Santos

A Beleza do Som
A Beleza do Som
5 min readApr 2, 2023

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“Devem existir, têm de existir, relações exatas entre essas diferentes expressões de algo idêntico, e tais que sejam reversíveis ao ponto de, se as entendermos, podermos traduzir uma pela outra.”

— Arthur Honegger, 1931.

Historicamente a humanidade, por meio das artes, tem buscado reproduzir o mundo sensível ou ideal. Esse processo de (re)construção do mundo e da sociedade encontrou na Literatura, nas Artes Visuais e posteriormente na fotografia e Cinema, um meio de vir ao mundo.

Na Música, cuja matéria prima é o som, também foram realizadas diversas tentativas de “tradução” do mundo externo para seu interior. Entre essas propostas, os ideais da Música Programática, da Música Descritiva, da Paisagem Sonora e até da Ecologia Sonora, podem ser citados.

Porém, essa transformação de elementos, em sua maioria visuais, em sons organizados não é um processo simples e direto. Sobre isso, Murray Schafer (SCHAFER, 2011) nos explica:

“[…] formular uma impressão exata de uma paisagem sonora é mais difícil do que a de uma paisagem visual. Não existe nada em sonografia que corresponda à impressão instantânea que a fotografia consegue criar. Com uma câmera, é possível detectar os fatos relevantes de um panorama visual e criar uma impressão imediatamente evidente. O microfone não opera dessa maneira. Ele faz uma amostragem de pormenores e nos fornece uma impressão semelhante à de um close, mas nada que corresponda a uma fotografia aérea.”

Mas, apesar de todas as dificuldades, a Música Programática e a Música Descritiva sobreviveram ao “teste do tempo” e continuam sendo produzidas, pesquisadas e executadas.

Um bom exemplo, foi realizado por Heitor Villa-Lobos após uma provocação do jornalista estadunidense Vincent Pascal que, entregando-lhe uma fotografia da paisagem em Manhattan, sugeriu que o compositor brasileiro realizasse uma obra inspirada por ela. Desse contexto surge “New York Skyline Melody”, cujo tema principal é baseado na linha melódica extraída, pelo autor, do contorno dos edifícios vistos na imagem, entre eles o Edifício Woolworth (provavelmente o mais alto da região na época). Esse processo, denominado “Melodia das Montanhas”, já havia sido utilizado pelo próprio Villa-Lobos na composição de sua “Sinfonia Nº6”.

Foto de Todd Quackenbush retirada do Unsplash

O próprio Vincent Pascal, em edição da Revista O Cruzeiro, de maio de 1940, explica:

“Villa-Lobos disse: ‘Eu, como alguém que adora sua cidade de Nova Iorque mesmo sem nunca a ter visitado, vou escrever a melodia dela especificamente para você’. Tomando uma fotografia do Baixo Manhattan, o compositor exclamou: ‘O sentimento que esta foto me dá é claramente menor, embora eu saiba que o interior da cidade é claramente maior. Eu a basearia em C menor.’ E assim o fez, traçando rapidamente a linha do horizonte. (…) Ele fez um rascunho duplo da melodia, solfejou-a com murmúrios, ressaltou seu caráter oriental, e terminou a composição em uma hora e 50 minutos. (…) Clímax da composição errante: sua escalada, topo e descida do Edifício Woolworth.” (PASCAL, 1940, n.p.).

A técnica, simplificadamente, consiste na construção de um gráfico em dois eixos, onde o eixo y apresenta as alturas das notas e o eixo x a linha do tempo (podendo ser divididos em tempos ou compassos). Após a escolha da tonalidade e da fórmula de compasso, traça-se os pontos escolhidos (ou visualizados na fotografia) e posteriormente completa-se as lacunas, realizando os contextos rítmicos e harmônicos conforme as opções do compositor.

Figura 1: https://www.carloskater.com.br/new-york-skyline

Após esse processo, é possível realizar a transcrição para a partitura dos elementos fixados, gerando assim a obra acabada.

Figura 2: https://www.carloskater.com.br/new-york-skyline

Nessa obra, Villa-Lobos optou por realizar uma repetição completa do trecho (repetição essa quase idêntica), provavelmente para que a peça tivesse uma duração mais próxima ao padrão de obras para piano solo da época. Ao fim, Villa-Lobos acrescenta um compasso, provavelmente para ampliar a sensação de “encerramento” da obra, concluindo assim sua “tradução” da imagem ao som.

Deixo aqui o convite para audição da obra e duas distintas versões: a original para piano e na versão orquestral:

NEW YORK SKYLINE, de H.Villa-Lobos:

https://www.youtube.com/watch?v=JrlKxY9BqeQ

New York Sky Line Melody (version for orchestra):

https://www.youtube.com/watch?v=TpVLlflAzok

Referências:

CAZNOK, Y. B. Música: entre o audível e o visível. 2. ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Unesp/Funarte, 2008 (Coleção Arte e Educação).

FONTERRADA, M. T. de O. O lobo no labirinto: uma incursão à obra de Murray Schafer. São Paulo: Editora UNESP, 2004a.

______________. Música e meio ambiente: a ecologia sonora. São Paulo: Irmãos Vitale, 2004b.

IAZZETTA, F. Representação e referencialidade na linguagem musical. In: LIMA, S. A. de. [org.]. Faculdade de Música Carlos Gomes: retrospectiva acadêmica. Volume 8. São Paulo: Musa Editora, 2005.

LÉVI-STRAUSS, C. Olhar escutar ler. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

SANTOS, D. C. “Taubateanas”: memória e identidade com a cidade na produção e na recepção da obra musical de Yves Rudner Schmidt, 2018. [Dissertação de Mestrado]

______________. Cavarucanguera do Ciclo “Taubateanas” de Yves R. Schmidt e o Reconhecimento da Identidade em Artistas da Cidade Taubaté-SP. In: PIMENTA, Carlos Alberto Máximo; LOPES, José Rogério. (Org.). Panorama das Políticas Culturais e Ambientais no Brasil — Volume 3. 1ed. Porto Alegre: CirKula, 2020a, v. 3, p. 159–204.

______________. O (Re)Conhecimento da Paisagem Sonora no Ciclo Taubateanas, de Yves Rudner Schmidt. In: Angela Michele Suave; Maria Angela Boccara de Paula. (Org.). Temas Interdisciplinares e Desenvolvimento Humano: Cultura e Políticas Sociais em Debate. 1ed. Taubaté-SP: EdUnitau, 2020b, v. 1, p. 104–126.

______________. Arnold Schoenberg e Yves Rudner Schmidt: uma relação musical in: Revista Música, v.21 n.2 — Dossiê O Legado Musical de Arnold Schoenberg e seus reflexos na América Latina: 1951–2021. Universidade de São Paulo, 2021.

SCHAFER, R. M. O ouvido pensante. Trad. Marisa T. de O. Fonterrada, Magda R. Gomes da Silva, Maria Lúcia Pascoal. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1991.

______________. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. Trad. Marisa Trench Fonterrada. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

VIANA, F. H. A paisagem sonora de Vila Rica e a música barroca das Minas Gerais (1711–1822). Belo Horizonte: C/ Arte, 2012.

WISNIK, J. M. O som e o sentido: uma outra história das músicas. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

SITES:

https://www.carloskater.com.br/new-york-skyline

https://wisley.net/defesa/home/v-metodologia-e-analise-musical/da-fotografia-para-a-musica/

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