A música que fica

Gustavo Santana

A Beleza do Som
A Beleza do Som
4 min readOct 9, 2022

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Sou muito grato pela oportunidade de escrever minhas reflexões e questionamentos nessa plataforma, gosto da liberdade com a qual posso trazer textos baseados nos dilemas sociais e estruturais que permeiam o pensamento e a existência da nossa classe artística. Dessa vez, no entanto, trilharei um caminho muito mais íntimo e pessoal, portanto muito mais vulnerável, o que me possibilita afirmar que este é o texto mais difícil que eu já escrevi neste espaço.

Meu avô, Seu Luiz, faleceu dia 11 de setembro deste ano e não, meu avô não era um músico famoso, um grande crítico social reconhecido ou algo assim, mas de qualquer maneira, não havia outra possibilidade além de escrever algo sobre ele.

Imagem de Andrew Yurkiv retirada do Unsplash

Foi meu avô quem me deu meu primeiro violino, de uma forma ou de outra eu estava me interessando cada vez mais pelas aulas desse instrumento que eu tinha no Projeto Guri no polo de Caçapava. De lá pra cá, ele continuou sendo meu maior fã, perguntando e orgulhando-se de cada pequeno passo (que para ele era sempre grande).

Escrevi ali que meu avô não era um músico famoso, mas não há controvérsias de que ele era músico, cantou muitos anos na igreja e não havia um momento em que não buscava uma superfície qualquer ou até mesmo a própria barriga para “batucar”. Quando se cansava disso, ligava o rádio no volume mais alto possível, conhecendo ou não as músicas, seguia com a vida tendo aquela seleção aleatória de uma estação qualquer e quando se enjoava disso, era então a hora de assobiar alguma melodia.

Nos natais em família, sempre sediados na sua casa, era parte fundamental as músicas natalinas em versões que misturavam samba e pagode com arranjos duvidosos, mas que cabiam tão bem naquele momento, era impossível desvincular-nos delas.

É claro, não posso deixar de lado que Seu Luizinho era um grande corintiano e, portanto, ouvir o hino do time, era como ouvir de fato uma grande sinfonia, uma composição complexa e reconfortante.

Na missa de sétimo dia do meu avô, parte da tradição católica de lidar com o luto, logo na primeira canção da celebração, lágrimas preencheram os olhos da minha família, não apenas por se tratar de um momento doloroso e difuso, mas pela música escolhida pela banda que coincidentemente era a cara de Seu Luiz, uma música que ele cantava, chamada “Venho a Ti”, que diz em um dos trechos:

“E Tu, que és o Amor,

Escuta cada prece de dor, de amor.

E Tu, que és a paz,

Dá-nos a esperança em cada momento, Senhor,

E abre o Paraíso a nós.”

Como um músico em busca de ideais um tanto concorridos e estreitos em um país que ainda não abraçou a necessidade de cultura por completo, muitas vezes me vejo desesperançoso, com medo de não alcançar meus objetivos e desgastado depois de ouvir repetidos “nãos”, com a eterna sensação de estar perdendo tempo insistindo em algo sem resultados, com receio de que minha música não seja relevante.

Meu avô não passou por nenhum desses questionamentos, pois como eu disse, não trabalhava com música. Entretanto, ainda assim, no momento que a missa começou, com a música que tocava, nos lembramos dele de maneira tão íntima que parecia que ele estava ali.

Quando alguém se vai, o silêncio ecoa de uma maneira que eu jamais presenciei em nenhuma composição, na literatura de nenhum compositor. Porém, tenho sentido, de maneira cada vez mais palpável, que é na sequência dos sons, da melodia, que mora a eternidade.

Como eu disse, meu avô virou alma no dia 11 de setembro, nesse dia, antes de ir ao velório, toquei a última récita da ópera Gianni Schicchi no Teatro Metrópole em Taubaté, ópera que numa infeliz coincidência tem como temática principal a morte de uma personagem e sua herança. Por um instante achei que não daria conta, mas fui porque senti que era o que meu avô queria, me arrepiei em muitos momentos, principalmente quando me dei conta que a camisa social que eu estava usando era dele. No fim, consegui tocar até o final.

Tem sido assim, toda vez que o silêncio da ausência é rompido por um som, eu lembro dele, e vai ser assim sempre que eu vou ouvir música católica, o hino do Corinthians, as músicas de Natal… vai ser assim sempre que eu pegar o violino. Talvez a música não precise de êxitos triviais para cumprir seu papel, ainda que estes tenham sua função e relevância dentro do nosso meio.

Talvez a música seja o laço mais firme da ilusão da infinitude ou talvez seja a confirmação de que não é irreal porque, se o som transporta para perto, estou certo de que estaremos sempre juntos, vô!

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