A sala de aquecimento

Gustavo Santana

A Beleza do Som
A Beleza do Som
4 min readFeb 5, 2023

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Eu me lembro da primeira vez que entrei em uma sala para uma audição, foi na primeira vez que fiz o processo seletivo para a EMA Fêgo Camargo, era 2012 — se não me falha a memória. No ano seguinte, mais uma vez, me deparei com o mesmo cenário e ainda que não tenha sido convocado na primeira vez por conta da falta de vagas, esta segunda tentativa resultou na minha convocação e permanência na instituição por sete anos, mas o núcleo desse texto não é divagar sobre esses sete anos, isso ficará para uma próxima oportunidade.

Ainda que eu me lembre exatamente da primeira experiência de uma prova com banca, não me recordo da primeira vez que entrei em uma sala de aquecimento — pode ser que isso até tenha acontecido em uma dessas experiências nos testes para alunos novos da Fêgo (como carinhosamente chamamos a Escola), mas algo me diz que não. Como não consigo lembrar-me da primeira vez, utilizarei a memória da última vez em que estive em um ambiente assim como ponto de partida para minha reflexão.

Não me recordo de ter escrito até então sobre um local físico, se não me falha a memória tão frágil, tenho dedicado meu tempo nessa plataforma para dizer sobre alegorias, imagéticos e reflexões. Não fugirei dessa mesma narrativa dessa vez, acho que a sala de aquecimento, embora transmute de dimensão e localização geográfica, mantém em si, independente das particularidades, um aglomerado de eventos e situações.

Foto de Kamil Kalkan, retirada do Prexel

A última vez que entrei em uma sala de aquecimento foi há exatamente uma semana, considerando o dia que estou escrevendo esse texto. Já estava me preparando para todas as características que envolvem esse momento, tentando manter a tranquilidade e uma certa apatia importante para a sobrevivência no espaço conturbado que é o ambiente de uma prova.

Para a minha alegria, na ocasião em questão, cada aluno tinha uma sala individual para aquecer, mas como eram salas “vizinhas” o sentimento que pairava era o mesmo de sempre.

A sala de aquecimento é capaz de revelar em sua existência falhas e problemáticas da engrenagem do que chamamos de cultura, da música de concerto ou a música erudita. Temos poucas oportunidades de trabalho, é fato, e, diante disso, o clima de rivalidade, comparação e até mesmo a necessidade de manter uma postura de superioridade rapidamente tomam conta. Não estou aqui dizendo que em situações de prova ,outros lugares do globo se isentem de todos esses aspectos simplesmente porque tem a cultura e as oportunidades estruturadas de outra maneira, muito pelo contrário, acredito que tais aspectos permanecem presentes, contudo acho importante entender as peculiaridades do que acontece aqui na Terra de Santa Cruz.

Em tempos de incertezas, cortes e uma infinidade de termos que tentam suavizar e camuflar o processo de uberização cada vez mais latente em nossa área, o que ficou muito claro com o recente caso do Theatro Municipal de São Paulo o ambiente de prova se torna ainda mais dramático e espetacularizado.

O intuito é sempre tentar transparecer superioridade, maior domínio do repertório, mais experiência e vangloriar-se dos feitos da carreira, dos professores com os quais estudou. Me recordo de vezes em que candidatos em tom de desdém questionaram outros também candidatos a respeito de valor do instrumento, instituições que estudaram e outra série de informações.

No ambiente de aquecimento vale tudo, tocar o trecho que está mais confiante várias vezes, tocar mais forte e mais rápido. Todos ali estão jogando um jogo que, por experiência, todos foram aprendendo as regras, sem perceberem que no fim das contas estão todos perdendo.

Se ainda existe um delírio de meritocracia, a sala de aquecimento os coloca em xeque, se ainda há uma ideia de que todos teremos o mesmo espaço nessa grande máquina, a sala de aquecimento também a coloca em xeque.

Receio que esse registro tenha tomado um caminho desesperançoso e rancoroso, não era esse o intuito. O ambiente de prova traz sim muitos aprendizados e eu particularmente ainda consigo me enxergar nesse ambiente.

Mas se para grande parte da sociedade o que fazemos não se configura nem ao menos como profissão, acho que cabe e caberá a nós mesmos refletirmos sobre nossas próprias excentricidades. Na sala de aquecimento nos deparamos com os delírios egóicos dos outros e os nossos, mas em que momento será que os alimentamos?

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