A voz não cabe na caixinha

Mere Oliveira

A Beleza do Som
A Beleza do Som
4 min readFeb 12, 2023

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“Mere Oliveira, é a sua vez”. Coração aos pulos. Desci as escadas, saí na coxia, sentei-me até que o cantor que estava se apresentando saísse, disse mentalmente o salmo 23, já que o faço a vida toda. Entrei. A visão é linda a partir do palco! A Voz humana não cabe numa caixinha.

Foto de Jackson David retirada do Unsplash

“Cantar é um dom”, “cantar é uma benção“, “cantar deixa todos felizes”, “cantar te deixa feliz”… Cresci assim cantando, vida simples, mas cheia de música. Minha mãe, com sua voz incrível e expressividade foi quem me fez cantar aos dois anos e meio, como ela mesma contava e isso foi o maior presente para a minha vida. Mas eu cresci e, enquanto estava cursando minha primeira graduação, conheci a técnica vocal, fui estudar, só então minha percepção a respeito da minha voz foi mudada.

“Muito ar nessa voz”, “você e suas duas vozes”, “não pare de vibrar”, “não mude de cor”, não, não, não, e a voz mudou. Alguns, não todos, diziam até que eu não era o que eu sabia ser. “Você é soprano”, “é lírico”, “é dramático”, “é mezzo”, “é contralto”, “essa característica negróide da sua voz precisa sumir”. Sem outra instrução, não me dei conta da agressão que isso significava; enquanto isso tentava cantar um repertório incorreto e praticar um treinamento de verdadeira exaustão vocal.

A voz quebrou, claro, a culpa era minha por insistir que era mezzo-soprano (e sou!) e querer cantar o meu repertório junto com o repertório que me atribuíam, então, a expressividade deu lugar ao medo, não havia mais prazer, a voz que me identificava sumiu. Não tinha mais voz, só conseguia me lembrar de uma frase de Marian Anderson, “enquanto você continuar a colocar uma pessoa para baixo, você também vai para a mesma direção; o que significa que você não poderá alcançar maiores altitudes”, naquele momento parecia confortante saber disso.

Médico otorrinolaringologista especialista em cantor, fonoaudióloga, fenda, nódulo vocal, terapia, terapia, terapia, “ter-a-pia”, 11 meses sem cantar, reaprendendo a falar, reconstruindo meus sons, para então finalmente ter a benção de encontrar dois profissionais que souberam guiar a cantora sem voz, para redescobri-la, não ouvindo, mas sentindo.

“Quero que o público me sinta vibrar até em meus momentos de silêncio”, dizia Enrico Caruso, mas como fazê-lo insegura, incerta do resultado ou da compreensão da própria voz, que você permite desnudar-se para quem te ouve? Redescobrir a própria voz é o primeiro processo, mas é preciso aceitá-la, acolhê-la e no palco deixá-la voar. Sim, ela terá inconsistências muitas vezes, no entanto, é preciso aprender a não ter a pretensão da perfeição compulsória, mas sim da expressão e da liberdade, da vibração e dos afetos transmitidos pela voz.

Depois disso, conhecendo meu instrumento com maior propriedade, encontrei profissionais incríveis, que me permitiram voar. Professores, maestros, mentores, diretores de cena e pianistas preparadores são fundamentais para contribuir com o desenvolvimento da autoconfiança do intérprete, a influência deles todos será decisiva na autonomia, não falo de lisonja, que é péssima conselheira e responsável por vermos tantas “promessas” e “talentos” serem somente isso, mas sim, de corrigir com firmeza e gentileza, de chamar a atenção para os erros e inconsistências, sem esquecer de mencionar os acertos, para reforçar a aprendizagem no processo.

“Todo mundo é um trabalho em andamento. Eu sou um trabalho em andamento. Quero dizer, eu nunca cheguei. Eu ainda estou aprendendo o tempo todo”, disse Renee Fleming. O importante em toda jornada é o processo, o caminho, é nele que o indivíduo se desenvolve, se constrói. Enfatizar a chegada, o alvo, “o chegar lá” faz tudo acabar e ponto, mas o processo é onde são construídos princípios, assimiladas as virtudes, desenvolvidas as habilidades e multiplicadas as ferramentas úteis para que o trabalho seja proveitoso, agradável e seguro dentro das suas possibilidades individuais, acreditar no processo faz o caminho valer a pena.

A subordinação à técnica nos tornou “máquinas de cantar” ou nos elevou a um nível melhor de comunicação? A compreensão da obra e seus afetos é menos importante quando tratamos de avaliar um cantor lírico? O virtuosismo técnico nos tornou maniqueístas na prática, alijando-nos da beleza que cada intérprete pode incutir na obra, utilizando sua referência cultural e afetiva? Não tenho a intenção de dizer certezas, jamais, mas de promover reflexão construtiva, unindo técnica e academia à construção do indivíduo que faz a arte, que expressa na própria voz mais do que significam 20 segundos de emissão contínua, afinal, como me disse um grande professor: “ninguém canta melhor por que deixou de respirar”.

Orgulhar-se por ter aproveitado o processo e crescido, deixando para trás o receio, e colorindo sua interpretação com todas as potencialidades da sua voz, nos mais distintos repertórios é justo, é devido, é bom e todos devemos praticá-lo.

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