Carreira

A Beleza do Som
A Beleza do Som
Published in
6 min readMay 7, 2023

Ivanildo Jesus

Certo é que a educação musical não se destina à criação de profissionais da música, do mesmo modo que a educação física não se destina a criação única e exclusiva de profissionais do esporte. Ambas as áreas, dentro do guarda-chuva educacional, trabalham por auxiliar o sujeito no pleno desenvolver de suas habilidades, sob diversos pontos de vista, tais como: habilidades socioemocionais, cognitivas, comportamentais, disciplina, desenvolvimento da subjetividade e da motricidade.

Contudo, imaginemos que, após anos oferecendo aos aprendentes o acesso ao conhecimento, quererão eles também o acesso ao universo laboral de seus professores. Em Pedagogia da Tolerância, ao falar sobre seu trabalho com os povos indígenas, Freire interpreta, “se vocês vem para cá oferecer pra gente os primeiros aninhos da escola, pra gente virar operário de vocês, a gente quer agora estudos para que possamos ser médicos, engenheiros, padres, bispos; não são só vocês, não…”( FREIRE, Paulo, Pedagogia da tolerância, p. 31)

No caso, o exemplo de Freire com os povos indígenas aplica-se também aos vulneráveis. A problemática que proponho é a seguinte: projetos sociais e escolas de música — quando exitosos — trabalham por criar uma atmosfera educacional salubre, para o pleno desenvolvimento das habilidades musicais, e, após anos de cultivo, colheremos músicos. Os alunos se interessarão por, como seus professores, desenvolver atividades laborais artístico-musicais. Aqui, começamos uma complicação.

O professor Luiz Soler tem uma frase salutar, “os ricos não querem se profissionalizar e os pobres não podem”. Imagine você, professor de música — e de instrumento, sabemos que os dois não são a mesma coisa -, sempre às voltas com as tantas e muitas preocupações da carreira, se, de alguma forma, for exitoso no seu fazer, aparecerá um aluno com a frase que nos tira a respiração: “Professor, eu quero ser músico”.

Foto de Stan Versluis retirada do Pexel

Se para professores a frase já causa o sobressaltar de sobrancelhas, aos responsáveis é como uma condenação, pensam eles: como ele/ela vai sobreviver com um violoncelo? Afinal de contas, instrumento paga conta?

Durante o processo educativo podemos observar que o universo da música traz ao aprendente pertencimento, identidade e significado. Observo com atenção meus alunos quando trocam a foto do perfil de seus bichinhos de estimação e desenhos animados, pelas fotos deles com o instrumento. Penso comigo, “pronto, mais um mordido pelo violinismo”. Na escola e no meio familiar os mordidos pelo instrumento passam a ser reconhecidos como aqueles que tocam.

O instrumento para de ser só um meio para trafegar no universo musical, para significar quase que um fim em si mesmo. A identidade deles mescla-se ao fazer instrumental/musical. Um dos motes da filosofia Suzuki diz que precisamos estudar todo dia que comemos. Os que tomam isso para si, logo se verão nutridos por um fazer artístico indissociável de suas personalidades.

Essa transformação está muito longe de afetar somente o aluno. A família que quer ver no seu seio um instrumentista, mesmo que não profissional, precisa lidar com anos de uma prática instrumental iniciante que, aos ouvidos leigos, passa longe de ser agradável. Mas é necessário, se eles entenderem com objetividade o que está acontecendo, estimularão seus filhos à prática. Afinal de contas, a educação instrumental é sobre exemplo, feedbacks sinceros e reforço constante.

Estudar música, arte em geral, é um investimento — palavra que não gosto, dado seu sentido de lucro, dentro do universo liberal — sem fim da família, do educando e da sociedade. A logística de transporte para as aulas, assistir concertos, compra, troca e manutenção do instrumento, impressão infindável de partituras, tudo isso demanda o uso do nosso ativo mais valioso: o tempo. Para a sociedade a criação de espaços que propiciem a atividade musical, principalmente em tempos de austericídio, é de uma coragem política ímpar.

Quando a criança, sobretudo, está nesse processo, os sacrifícios parecem valer mais a pena. É lindo ter um filho instrumentista que, mesmo hesitante, faz música para as visitas. Contudo, à medida que eles vão crescendo, a boniteza vai desaparecendo, as atividades musicais chegam a competir com as atividades escolares, um verdadeiro disparate. Papais, mamães e responsáveis começam a ver então o perigo se aproximando: na idade que o filho dos outros já está talvez pensando em medicina ou direito, o filho deles se vê cada vez mais preso ao universo musical.

Relembro a frase de Soler, “os ricos não querem”. Já pela adolescência e pelas muitas vivências que o dinheiro proporciona, somado ao assédio da família, um pouco antes do vestibular o instrumento começa a ficar de lado, os cursinhos entram em cena, redação e os estudos constantes da escola tomam a vez do instrumento. Entretanto, os que a família assiste com cautela a tomada de decisão do futuro, também na adolescência é possível que o filho já esteja metido em alguma atividade musical que remunere.

O que fazer então quando pensamos que nossas possibilidades de geração de renda, nossas possibilidades pessoais de labor, serão um dia as possibilidades de labor dos nossos pequenos? Incentivar ou desincentivar? Mandar a real, como diz o dialeto popular, ou preenchê-los de coragem para um futuro que se descortina no mínimo, auspicioso.

Diante dessas dúvidas sigo o exemplo da minha professora, que hoje vejo como revolucionária. Quando estávamos perdidos nas reflexões sobre as possibilidades de uma carreira musical, ela, com seu jeitinho sempre cordato, dizia: o sucesso é ser feliz. Vamos pensar um segundo sobre isso.

Pode o pobre, o vulnerável, aquele a quem as faculdades artístico-musicais trabalham na periferia das possibilidades, ser feliz? Pode o pobre sonhar com um futuro cujo labor lhe permita não só subsistência, mas sim, felicidade? Sim, ela era revolucionária. Ao incutir o desejo de felicidade na nossa mente, através do sucesso pelo trabalho, construía no nosso imaginário o arquétipo da realização plena. Uma realização que vai além da mera subsistência. Uma realização que, após o findar de um dia de trabalho, você se vê feliz e não só cansado.

Contudo, diante da nossa oportunidade de felicidade, há possibilidades de um mundo que nos quer cativo de outras demandas. Que nos quer, como dito no exemplo de Freire, operário. Não que, logicamente, ao problematizar a experiência laboral operária a demonize, mas a faço ver do ponto de vista da realização e da demanda, fazendo notar que há poucas vagas em uma sociedade extremamente desigual para a remuneração do fluir das possibilidades artísticas em detrimento das possibilidades condicionadas pelo capitalismo. Na sociedade atual as possibilidades da nossa história foram tomadas de assalto, as possibilidades que populam o imaginário são as possibilidades do mercado. Para qualquer adolescente oriundo das diversas vulnerabilidades, a preocupação imediata é o labor por subsistir e não por prazer. Afinal, pode o pobre ter prazer?

São muitas pontas soltas que cercam a reflexão da música como carreira, o músico estará sempre, indubitavelmente, pensando em dinheiro. Porém, como fui ensinado que o sucesso deve conter felicidade, acredito que seja necessário acrescentar à máxima da minha professora um quê teórico político. Escolher a música como opção de trabalho ou o fazer artístico é, e acredito que por muito tempo o será, uma posição revolucionária. Será a escolha por uma espécie de maturação de si, como um bom vinho, que demanda o que o sistema nos toma: tempo. Essa é a nossa maior briga: ter condições de tempo para evolução.

É certo que progrediremos, contudo, numa carreira tão precarizada, cuja necessidade de muitas atividades se fazem sempre presentes, é primordial deixarmo-nos cientes da nossa constante falta de tempo.

Acrescento que, entre nós, o desejo de revolução não deve se abater pelas intempestivas tentativas do capital. Escolhemos, acredito que grande parte de nós, a opção laboral musical pelo prazer da experiência estética, por encontrar beleza no som e pela possibilidade de fazer que outros também a encontrem. Essa será sempre parte de nossa missão: permitir as condições para que se encontre o belo, explorando, dissecando e expandindo-o em significado, para que possa abraçar tantos quanto possível e não se ater somente ao prazer de uma suposta elite.

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