Cenas de uma ida ao 52ª Festival de Inverno de Campos do Jordão

Ivanildo Jesus

A Beleza do Som
A Beleza do Som
4 min readJul 10, 2022

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Saímos uma hora antes. Era para termos saído uma hora e meia antes, mas precisei alterar a agenda de aulas do sábado, da tarde para a manhã. Soma-se às aulas a pesquisa incipiente sobre o Festival de Inverno de Campos do Jordão. Eu queria fazer crítica social, dizer que o festival que lá está há cinquenta e dois anos não contempla os Jordanenses. Contudo, comecei a pesquisa pelo livro da quinquagésima edição, com textos da Camila Fresca, que traçam um panorama histórico das ações do Festival. Nada feito, há cinquenta e dois anos de história, gente com muito mais talento literário do que esse que vos fala já fizeram críticas mais acertadas. Resta-me a resignação, e a crônica.

Se por um lado o Jordanense fora do Festival não parece incentivar muito as ações sinfônicas — afinal, a cidade ainda não conta com um grupo artístico sinfônico que faça jus à fama de “Suíça brasileira” -, por outro, é uma festa lucrativa para o comércio. Campos, assim como todo o Vale, parece começar a entender o papel da educação musical. As iniciativas céleres ainda não logram alçar músicos para o seu tão amado Festival, demos então tempo ao tempo. Oxalá na centésima edição.

A viagem até o portal correu bem, não fosse o sol das treze horas castigando os melômanos. Meu JAC 1.4 disputava em pé de igualdade com os inexperientes donos de Honda Civic subindo a Serra. Ar ligado, ficávamos na esquerda, dando lugar aos Porsches e SUV’s. Habituado que sou, passei pelo portal direto, sem panfleto. Qualquer distração nos custaria minutos de Wagner.

O concerto começava às 14h. Às 14:10 juntamo-nos à fila de carros na frente do Parque Capivari disputando uma vaga. Sol a pino. Impaciência. Na nossa frente, no primeiro carro da fila, turistas desembarcam e começam a tirar seus pertences do porta-malas. A tarefa parecia que duraria anos. Paciência a pino. Desisti. Contornei a praça, deixei minhas acompanhantes na entrada lateral do parque e empreendi uma busca pela selva de estacionamentos.

Cinquenta reais o dia todo. Assim os donos dos estacionamentos que circundam o parque defendiam-se da inflação. Cinquenta reais, o dia todo, e todos lotados. Segui, não sabendo muito bem para onde. Uma placa ao longe avisava: vinte reais o dia todo. Fui nessa direção, andei mais uns três minutos de carro, apareceu o famigerado. Porém, como os outros, estava lotado. Insisti. Não queria perder o Khachaturian. Exploda-se o Wagner, detestável.

Minha insistência valeu a pena. Estacionei. Voltando ao parque, o vício fala alto, olhei no celular: “pode trazer o casaco que está na bolsa azul do porta-malas” — “sim”. Volto para o estacionamento. Quando chego na platéia Graton já havia começado o Khachaturian: “re re fa mi fa”. Me sento, entrego o casaco. Conseguimos nos sentar ainda pelas últimas fileiras da plateia. O sol judiava. O concerto seguia. Graton, a Experimental, Jamil e Khachaturian pareciam se entender. Apesar de não ser o Gil, Graton entregava vigor.

Foto retirada das mídias sociais do Festival de Inverno de Campos do Jordão

Final do primeiro movimento. Palmas. Jamil vira para o público, pede desculpas, e diz que se esqueceu de explicar que aquele fora o primeiro movimento. Segundo movimento. Agora vigor e lirismo condensam-se. O vento parece discordar da interpretação, fazendo voltar páginas da partitura. Talvez fosse Éolo pedindo um antecipado bis. Acudido pelo spalla, Cláudio Micheletti, Graton termina — um pouco desconcertado com o sufoco do vento — o segundo movimento. Mais palmas.

Pregadores bem presos. Terceiro movimento. Allegro Vivace. Uma intro enérgica e rítmica que desemboca o frenesi no solo do clarinete, e por fim o violino. Éolo dá descanso. O sol também. Fim do terceiro movimento. Palmas e bis. As amigas que me acompanhavam falam do carisma do maestro. “Você o conhece?” perguntam. “Jamil Maluf fundou essa orquestra, uma das três grandes orquestras jovens de São Paulo. Ele é ex-apresentador de programa na Cultura. Reza a lenda que esse ano deixará o posto para a Alba Bomfim, a primeira mulher negra à frente de um grupo dessa envergadura em São Paulo.” Respondo.

Na saída reencontro meu antigo professor, o Spalla da orquestra, Cláudio Micheletti. “Ivanildo”, ele diz. “Esse é o Ivanildo”, diz me apresentando para outros alunos que o acompanhavam. “Juízo Ivanildo”, me adverte. “Juízo, professor”, retribuo.

Desço da Serra me perguntando sobre o valor da música ao vivo. Talvez tivesse mais paciência para essas aglomerações se trabalhasse menos. Conjecturo também sobre como será a nossa apreciação quando enfim a revolução chegar.

P.S.: O primeiro título desse texto foi “Uma ida ao 52º Festival de Inferno de Campos do Jordão”. Talvez ato falho, talvez maldade. De qualquer maneira, achei que você deveria saber disso. Bom domingo.

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