Das armadilhas do mérito

Alessandro Oliveira

A Beleza do Som
A Beleza do Som
4 min readSep 3, 2023

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Nas últimas semanas, tenho estudado para concurso público. Infelizmente, não consigo me dedicar integralmente a essa tarefa e tenho o fardo de fazê-la concomitantemente com os estudos do doutorado e com meu trabalho de mediador cultural, o que torna minha rotina bastante cansativa e me faz, muitas vezes, sacrificar a saúde em prol dos objetivos de finalizar esses ciclos. Ainda assim, ontem, realizei uma prova e obtive bons resultados e é difícil não romantizar essa atitude de substituir a atenção à saúde pelo sucesso em uma ação que poderá me proporcionar um bom retorno financeiro. Em certa medida, existe um ego que deseja muito exaltar uma espécie de mérito nessa atitude.

Foto de Sippakorn Yamkasikorn retirada do Pexels

A palavra mérito vem de meritus, particípio passado do verbo mereo (mereço), em latim. Trata-se daquilo que é merecido, que vem em decorrência da própria atitude do indivíduo. Ela já era utilizada desde os séculos III e II AEC, como pode-se observar pelas obras do dramaturgo Plauto (Plaut. Asin. 3, 3, 147), e sempre teve o sentido de designar alguma espécie de valor pessoal e atribuí-lo a determinadas pessoas. Sem dúvidas, portanto, esse conceito é bem anterior ao capitalismo e, ainda mais, ao liberalismo.

Contudo, muitas pessoas progressistas, de forma bastante bem intencionada, criaram uma espécie de aversão a essa ideia — culpa, claro, dos coachs liberalóides que concedem ao mérito as prerrogativas de determinarem todas as situações culturais e socioeconômicas das pessoas — , fazendo com que tenhamos que tomar cuidado toda vez que falamos sobre o tema. O quanto uma conquista advém do mérito pessoal e o quanto isso viria de um privilégio preestabelecido?

Sem dúvidas, o mérito é um conceito apropriado pela ideologia dominante de forma a organizar a sociedade sob uma estrutura de sentimento de culpa, muitas vezes, racionalizado por um discurso de alocação de status (GOLDTHORPE, 1996). Diego Helal (2015) mostra a nós como o próprio processo de educação da nossa sociedade enfatiza a proposição de que há um esforço individual capaz de posicionar o indivíduo em um estatuto diferente na sociedade. A educação, essa mesma, que costumamos chamar de libertadora, frequentemente é uma das principais vias pelas quais o discurso meritocrático é veiculado; basta observar como os pais costumam justificar aos filhos o porquê de eles deverem estudar: “Para ser alguém na vida!”, “Para não ficar pobre!”,“Para ter um bom emprego!”. Todas as respostas impõem um grau de desigualdade, de maneira a colocar aquele que estuda como diferente dos demais.

Assim, percebemos que a ideia de mérito foi intoxicada pelo modo de produção capitalista, assim como várias relações nossas foram estabelecidas por discursos reestabelecidos por essa maneira de organizar a sociedade (ENGELS, [1884] 1980). Contudo, o fato de uma instituição estar sendo determinada pelo capitalismo não significa que ela deixará de existir fora dele; no final das contas, o modo de produção não determina a existência de uma coisa, mas a forma que nos relacionamos com ela. Dessa maneira, assim como o mérito existia antes das sociedades modernas, sendo bem anterior à sua apropriação pelo discurso burguês, o desmantelamento da nossa atual estrutura social não necessariamente apagará esse conceito, mas o transformará.

Por fim, para não me alongar muito, acredito que devemos sempre ter cuidado com a romantização do esforço, mas devemos também ter muito cuidado para não apagar o empenho alheio. O que deve ser apagado no discurso meritocrático é a ilusão antimaterialista de um sucesso necessariamente advindo do mérito, é a negação da estrutura que há ao redor das nossas relações. O problema, por fim, não é o conceito, mas o que há por detrás dele e, conforme vejo, a simplificação ao atacar o mérito por si só acaba destoando do alvo principal, aquilo que é o criador das nossas desigualdades. Novamente, como em todo texto que redijo aqui, faço questão de reforçar: a culpa é do capitalismo.

Enfim, não é legal sacrificar a própria saúde para obter algum sucesso, tampouco ignorar a existência de privilégios que nos permitem disputar alguns espaços na sociedade. Alimentar o ego a partir da romantização do trabalho é algo que ainda faço, mas venho tentando desconstruir. É isso, espero não ter escrito muita besteira.

Referências:

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 6.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980

GOLDTHORPE, J. H. Problems of “Meritocracy.” In:ERIKSON, R.; JOHNSSON, J. O. (Eds). Can education be equalized? The Swedish case in comparative perspective. Boulder: Westview, 1996.

HELAL, Diego. Mérito, Reprodução Social e Estratificação Social: apontamenots e contribuições para os estudos organizacionais. Organ Soc, 22 (73), 2015, pp. 251–68.

PLAUTO. Comédia dos Asnos. In: RODRIGUEZ, Renan de Castro. Plauto em verso: tradução dos senários iâmbicos e dos septenários trocaicos na Asinária. 2020. 144 f.

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