Das armadilhas do mérito
Alessandro Oliveira
Nas últimas semanas, tenho estudado para concurso público. Infelizmente, não consigo me dedicar integralmente a essa tarefa e tenho o fardo de fazê-la concomitantemente com os estudos do doutorado e com meu trabalho de mediador cultural, o que torna minha rotina bastante cansativa e me faz, muitas vezes, sacrificar a saúde em prol dos objetivos de finalizar esses ciclos. Ainda assim, ontem, realizei uma prova e obtive bons resultados e é difícil não romantizar essa atitude de substituir a atenção à saúde pelo sucesso em uma ação que poderá me proporcionar um bom retorno financeiro. Em certa medida, existe um ego que deseja muito exaltar uma espécie de mérito nessa atitude.
A palavra mérito vem de meritus, particípio passado do verbo mereo (mereço), em latim. Trata-se daquilo que é merecido, que vem em decorrência da própria atitude do indivíduo. Ela já era utilizada desde os séculos III e II AEC, como pode-se observar pelas obras do dramaturgo Plauto (Plaut. Asin. 3, 3, 147), e sempre teve o sentido de designar alguma espécie de valor pessoal e atribuí-lo a determinadas pessoas. Sem dúvidas, portanto, esse conceito é bem anterior ao capitalismo e, ainda mais, ao liberalismo.
Contudo, muitas pessoas progressistas, de forma bastante bem intencionada, criaram uma espécie de aversão a essa ideia — culpa, claro, dos coachs liberalóides que concedem ao mérito as prerrogativas de determinarem todas as situações culturais e socioeconômicas das pessoas — , fazendo com que tenhamos que tomar cuidado toda vez que falamos sobre o tema. O quanto uma conquista advém do mérito pessoal e o quanto isso viria de um privilégio preestabelecido?
Sem dúvidas, o mérito é um conceito apropriado pela ideologia dominante de forma a organizar a sociedade sob uma estrutura de sentimento de culpa, muitas vezes, racionalizado por um discurso de alocação de status (GOLDTHORPE, 1996). Diego Helal (2015) mostra a nós como o próprio processo de educação da nossa sociedade enfatiza a proposição de que há um esforço individual capaz de posicionar o indivíduo em um estatuto diferente na sociedade. A educação, essa mesma, que costumamos chamar de libertadora, frequentemente é uma das principais vias pelas quais o discurso meritocrático é veiculado; basta observar como os pais costumam justificar aos filhos o porquê de eles deverem estudar: “Para ser alguém na vida!”, “Para não ficar pobre!”,“Para ter um bom emprego!”. Todas as respostas impõem um grau de desigualdade, de maneira a colocar aquele que estuda como diferente dos demais.
Assim, percebemos que a ideia de mérito foi intoxicada pelo modo de produção capitalista, assim como várias relações nossas foram estabelecidas por discursos reestabelecidos por essa maneira de organizar a sociedade (ENGELS, [1884] 1980). Contudo, o fato de uma instituição estar sendo determinada pelo capitalismo não significa que ela deixará de existir fora dele; no final das contas, o modo de produção não determina a existência de uma coisa, mas a forma que nos relacionamos com ela. Dessa maneira, assim como o mérito existia antes das sociedades modernas, sendo bem anterior à sua apropriação pelo discurso burguês, o desmantelamento da nossa atual estrutura social não necessariamente apagará esse conceito, mas o transformará.
Por fim, para não me alongar muito, acredito que devemos sempre ter cuidado com a romantização do esforço, mas devemos também ter muito cuidado para não apagar o empenho alheio. O que deve ser apagado no discurso meritocrático é a ilusão antimaterialista de um sucesso necessariamente advindo do mérito, é a negação da estrutura que há ao redor das nossas relações. O problema, por fim, não é o conceito, mas o que há por detrás dele e, conforme vejo, a simplificação ao atacar o mérito por si só acaba destoando do alvo principal, aquilo que é o criador das nossas desigualdades. Novamente, como em todo texto que redijo aqui, faço questão de reforçar: a culpa é do capitalismo.
Enfim, não é legal sacrificar a própria saúde para obter algum sucesso, tampouco ignorar a existência de privilégios que nos permitem disputar alguns espaços na sociedade. Alimentar o ego a partir da romantização do trabalho é algo que ainda faço, mas venho tentando desconstruir. É isso, espero não ter escrito muita besteira.
Referências:
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 6.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980
GOLDTHORPE, J. H. Problems of “Meritocracy.” In:ERIKSON, R.; JOHNSSON, J. O. (Eds). Can education be equalized? The Swedish case in comparative perspective. Boulder: Westview, 1996.
HELAL, Diego. Mérito, Reprodução Social e Estratificação Social: apontamenots e contribuições para os estudos organizacionais. Organ Soc, 22 (73), 2015, pp. 251–68.
PLAUTO. Comédia dos Asnos. In: RODRIGUEZ, Renan de Castro. Plauto em verso: tradução dos senários iâmbicos e dos septenários trocaicos na Asinária. 2020. 144 f.