DesConcerto e Bandeirantismo

A Beleza do Som
A Beleza do Som
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4 min readNov 13, 2021

Ivanildo Jesus

A primeira semana de novembro foi de pesar aos músicos. Perdemos Nelson Freire, Marília Mendonça, Pat Martino e Leonardo David, ex-regente da OSES (Orquestra Sinfônica do Espírito Santo). Antes de adentrarmos no funesto início de novembro proponho que recordemos meses antes. No auge da pandemia nossos dias contavam com cerca de quatro mil mortes diárias. No dia 08 de novembro, segunda semana do mês, São Paulo não registrou nenhuma morte por Covid. Como se a morte sabendo que a nossa perplexidade cedera, ajustasse a mira, tirando-a dos milhares e travando-a nos artistas. O feito deu resultado. Ficamos abismados com a morte prematura da cantora. Conhecer ou desconhecer Marília Mendonça, e ser apreciador da sua produção, é irrelevante, a relevância dela vai além da nossa vã compreensão. Atualmente vemos que a vacinação — para o choro dos negacionistas — cumpre sua função. Hoje a pandemia arrefeceu, não morremos aos milhares. Porém, quando artistas dessa envergadura morrem, parte de nós vai junto. Sei que as duas coisas não são comparáveis, não pretendo me desvelar por uma descrição acerca do valor da vida humana, deixo isso aos capitalistas em seu frenesi pelo quantificável. Contraponho os fatos com objetivo de refletir sobre as aprendizagens que o luto nos traz.

Nos últimos meses nosso governante, escolhido em processo democrático — deixo a análise da probidade do certame aos órgãos competentes — caçoou reiteradas vezes das mortes por Covid; fez campanha para o vírus; foi veemente contra o uso de máscaras, trabalhou arduamente por tratamentos precoces fraudulentos, atrapalhou e quando necessário — na sua lógica perversa –, não fez o mínimo movimento para salvar vidas; e claro, como mostrou a CPI da Covid: tentou/e permitiu que lucrassem com tudo isso. Partimos desse anestesiamento proporcionado pelas milhares de mortes diárias, para comoção nacional pela morte de artistas.

Lembro da morte de Aldir Blanc, que rendeu aos artistas lei e auxílio de nome análogo, em sua homenagem. Durante o auge da peste me vi às voltas com o verso de Campos “Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens”, compreendi-o. Espero que a morte nos permita o tempo do cabelo branco e da umidade nas paredes. O número aviltante de mortes, com a comédia de péssimo gosto perpetrada pelo presidente e sua trupe deixou o nosso aprendizado com o luto obsoleto. Não sabíamos mais o que era luto coletivo. Morríamos aos montes, todos os dias, e havia quem fizesse graça disso. Todavia a arte, a cultura, a nossa contra-guerra silenciosa, porém sonora, continuava, se contrapondo à barbárie fúnebre dos milicianos. Mesmo longe, artistas de todos os seguimentos fizeram o possível para levar seu trabalho ao público. Fizemos lives, concertos e shows virtuais para dez pessoas, ou para duzentas mil, não importava, o importante era que estávamos lá. Diante do descalabro, música. Diante do descaso político, arte. Persistimos em busca dos nossos cabelos brancos, e da umidade nas paredes.

GABRIEL SCHLICKMANN/ISHOOT/ESTADÃO CONTEÚDO

Há outro fato que em meio ao caos dos últimos dois anos marca nossa memória coletiva acerca da morte: o incêndio da estátua do bandeirante Borba Gato. O ato reacendeu o debate sobre historicidade, há os que defendem, alegando que para indígenas e negros, grupos étnicos vitimados pelos bandeirantes, conviver com o enaltecimento público desse símbolo é uma atrocidade exposta, da mesma maneira há os que o julgam imprudente, que isso só traz prejuízo ao erário e não serve de nada, que se quisessem de fato fazer algo artístico pintassem a estátua. Uma intervenção artística mais soft. Argumento em geral que vem de quem tem ojeriza ao radicalismo. Por vezes conservadores enrustidos, tratam de maneira depreciativa atos que em sua miopia não contempla as vertentes artísticas burguesas.

Trago a baila o incêndio afim de trazer luz a outro debate. Adendo, perdoem-me pelos trocadilhos poéticos pífios, poeta frustrado vaza em toda oportunidade. Sigamos. No início do texto mencionei o nome de alguns artistas que nos deixaram. Espero que essas letras deixem entrever o meu respeito pelas suas produções, enquanto estetas sonoros. Entretanto, no intuito de ressignificar o contemporâneo e não mais erguer estátuas àqueles cujas trajetórias foi manchada pela vileza do assédio, externo aqui minhas preocupações. A consagrada revista Concerto, lar de grandes textos do mundo clássico, erudito e sinfônico, fez um texto demasiadamente lisonjeiro sobre um dos falecidos. Por mais que a sanha por fugir de questões viscerais se sobressaia, há uma espécie de dever moral que me impele ao que agora lhes digo: Taxar assediadores como bons homens, exemplos de correção e tecer lisonjas sem fim, sem ouvir os que corajosamente não se calaram ante à imperícia, é mal caratismo e desonestidade; é, em pleno séc. XXI, erguer mais uma estátua de Bandeirante, aos precursores de projetos musicais indispensáveis ao contemporâneo, ato que não exclui os malfeitos legados.

Querido leitor, sei que fui circunspecto, de um mistério sem fim. Espero que a sua curiosidade logre alguns passos no grande oráculo (google), por lá acharão as notícias que elenco, e poderão tirar suas próprias conclusões. À revista Concerto, meu pequeno conselho: Cuidado, nós estamos vigilantes. O mundo “erudito”, “sinfônico”, de “concerto” está mudando, os lugares para assediadores antes proeminentes, serão cada dia mais exíguos. A geração do “mimimi” veio para ficar, e não se calará diante das hegemonias e sua defesa desavergonhada do incorreto.

Respeitando aos que se foram, e não seguindo o exemplo da outra peste que nos assola (o presidente), reitero outra vez o meu respeito pela produção artística dos jazentes. Contudo, observar a ironia na máxima Machadiana se faz necessário “Está morto: podemos elogiá-lo à vontade”.

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