Errar para não fracassar: uma carta aberta aos meus alunos

Juliana Christmann

A Beleza do Som
A Beleza do Som
4 min readAug 27, 2023

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Foto de Monstera retirada do pexel

Engano, equívoco, falha, inexatidão, imperfeição, defeito, imprecisão. Muitos sinônimos ou exemplos de erro.

Durante quase três décadas de prática docente na área de música e de letras, um fenômeno do processo de aprendizagem sempre me chamou bastante atenção: a aversão ao erro. Muitas vezes, o sentimento chega a ser paralisante, a ponto de impedir que alguns alunos realizem uma nova atividade ou movimento, por medo de errar. A partir dessa observação, inspirada em experiências pessoais e profissionais (algo que não costuma estar presente na minha produção textual para essa plataforma), gostaria de propor uma reflexão sobre algo que, talvez, seja um tanto desconfortável para muitos de nós: a importância do erro.

Em meados de 1994, ainda adolescente, por ocasião de um recital de alunos, subi ao pequeno palco do conservatório onde estudava piano para apresentar um prelúdio de Chopin. Estava relativamente calma, mas errei um acorde, mais ou menos do início para o meio da peça. Parei. Recomecei, mas parei no mesmo lugar. Recomecei pela terceira vez, parei no mesmo acorde, mas, em pânico, levantei-me e saí andando dali. Não fui acolhida por nenhum adulto que, de alguma forma, olhava por mim ali. Ao contrário, ouvi reclamações e repreensões. Não passou pela cabeça de nenhum dos “decepcionados”, dos que criavam expectativas sobre mim (então, com 16 anos de idade), investigar a causa desse “apagão” e me ajudar a transpor o erro.

As consequências desse episódio afetaram profundamente (e negativamente) a minha relação com o palco, com a música e com o erro. O palco tornou-se, para mim, até os dias atuais, um local de desconforto e péssimas lembranças. No entanto, permitiram-me, posteriormente, identificar o mesmo trauma se desenvolvendo em muitos alunos, por diferentes causas. É desse ponto de partida que proponho a reflexão, mas antes de prosseguir, gostaria de salientar que esse não será um discurso contra a busca pela excelência e aprimoramento técnico. Ao contrário, quero defender a ideia de que o erro pode ser um aliado em sua busca.

Transferindo esse contexto para outras áreas de atuação, gostaria de propor um exercício de comparação. Como um bailarino aprende a realizar uma pirueta? Quantas vezes ele terá escorregado? Como um skatista aprende uma manobra? Como teria sido sua primeira experiência ao subir naquela tábua com rodinhas e se locomover por alguns metros? Quantas vezes ele terá caído? Como um surfista aprende a se equilibrar numa prancha? Quantas vezes ele terá sido derrubado à água? Agora, pensando em um exemplo diferente, em um piloto de avião, que lida com uma prática de maior risco: quantas vezes ele passou por simulações de voo até não mais errar e poder conduzir um avião em segurança? Imitação, repetição e simulação. Sem esses três elementos, sejam eles aplicados de forma programada ou de forma intuitiva, não aprendemos nada. Esses elementos fazem parte da evolução do ser humano desde que ele nasce e é bombardeado por todos os tipos de estímulos. Assim ele aprende a comer, andar, falar, viver em sociedade e desenvolver habilidades específicas. A criança simula ao brincar, simula ao falar “errado”, simula ao desenhar e escrever. Afinal, para desenvolver sua propriocepção, ela precisa desenhar o próprio corpo. Para isso, ela precisa cair e se levantar e tentar uma nova simulação. Ela precisa errar. A simulação serve para buscar falhas, resolvê-las e eliminá-las.

Eu pergunto, então, de onde é que aqueles que se propõem a aprender ou aprimorar práticas musicais tiram a ideia de que errar é fracassar na sua prática? A resposta pode estar em uma imagem equivocada e, talvez, superestimada que fazemos de nós mesmos. Parece contraditório, já que estou falando de erro? Explico: aprendemos a ter aversão por assistir aos nossos erros. Não admitimos, não suportamos ouvir a própria falha. Isso é consequência da falta de ambientes de simulação, onde o estudante possa se sentir acolhido e seguro para errar em paz, entender seu erro como referência para o ‘não erro’ e errar “melhor” na próxima tentativa.

Aos meus alunos, digo constantemente que quero vê-los errando. Sim, quero vê-los desenhar seus limites, como a criança que precisa esbarrar em algo, cair e sentir alguma pequena dor para entender-se espacialmente no mundo. Porém, quero vê-los errar melhor na aula seguinte, até que o erro desapareça e, assim, partimos para a busca de novos erros, erros MELHORES, através de repertórios mais difíceis e desafiadores, numa constante do seu processo de aprendizagem e aprimoramento. É, sobretudo, um exercício de humildade.

Só percebemos que estamos transpondo uma barreira quando podemos vê-la. E o erro é essa barreira que devemos transpor e que permite a nossa expansão de mundo. Como eu gostaria muito que alguém tivesse olhado para a minha versão adolescente de 1994, desanimada pela frustração de ter errado e dito: você errou, sim! Quem você pensa que é para não errar? Vai errar muitas vezes, mas vai errar cada vez melhor!

Busquem o erro para alcançar o acerto. É preciso errar para não fracassar.

Juliana é doutoranda em Semiótica e Linguística Geral e Mestre em Letras pela Universidade de São Paulo, bacharel em Composição e Regência pela UNESP e graduanda em Ciências Biológicas pela Universidade Cidade de São Paulo.

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