Estética Filosófica: Entre a Repressão da Razão e a Libertação da Sensualidade

Daniel Viera de Carvalho

A Beleza do Som
A Beleza do Som
4 min readMar 20, 2022

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A maioria das pessoas quando ouve falar o termo “estética”, pensa em pedicure, manicure, design de sobrancelhas, drenagem linfática, redução de gordura, plástica, conceito aberto em casas, jardinagem. Isso acontece porque houve uma apropriação de um conceito filosófico, primeiramente pela filosofia racionalista, depois uma apropriação pelo mercado, transformando “estética” em sinônimo de uma área de serviços e um desenvolvimento tecnológico na produção de mercadorias para este ramo econômico.

O termo “estética”, na verdade, tem origem na Grécia antiga. É o que os gregos nomearam como aísthesis (Αισθητική). E que passa longe deste significado relacionado aos cuidados do corpo ou de design e à nova indústria de produtos e serviços de beleza.

Foto de Наталья Кленова

No sentido original da palavra, trata-se da sensação, percepção sensível, sentimento. O significado de “estética”, nesse contexto, está intimamente associado ao prazer, sensibilidade, beleza, verdade, arte e liberdade. É a capacidade humana de perceber e sentir o mundo. Para os antigos, então, a estética tem a nobre função de reconciliar, na verdade dos sentidos, sensualidade e intelecto, prazer e razão.

A razão, ao contrário, pensa, teoriza, estabelece normas e, de um modo geral, tem a função de controlar os sentimentos, pois considera que nossos instintos, impulsos, paixões, prazer e sensualidade são apenas faculdades inferiores, com conotação negativa e, portanto, precisam ser submetidas, dominadas, pois em nada contribui para o avanço da civilização.

Segundo Herbert Marcuse, analisando de forma crítica a filosofia kantiana, entende que se estabeleceu um Tribunal da Razão Teórica e Prática. Este Tribunal funciona da seguinte forma:

  1. Condenação da Estética
  2. Repressão Cultural
  3. Estabelecimento do Princípio do Desempenho

Nesse sentido, a Estética e seus conteúdos se transformam em inimigos do Princípio do Desempenho na sociedade do trabalho capitalista. Não existe espaço para o prazer estético, há lugar apenas para indivíduos que produzem arte em forma de mercadoria, por um lado, e para indivíduos que consomem arte.

O consumo da arte é só uma ponta ínfima do iceberg, pois quem consome arte, na maioria das vezes, está preso na realidade opressiva da repressão da cultura e da condenação da estética, o que significa que os sujeitos foram, ao longo de um processo histórico, adestrados e domesticados a não apreciar o belo e a arte, a não sentir silenciosamente a natureza, a não se permitirem emocionar-se com nada, a não se envolver afetivamente. Enfim, os consumidores de arte foram lentamente doutrinados a observar o mundo e pensar todas as coisas e objetos como mercadoria.

“Não havia uma estética, como ciência da sensualidade, para corresponder à lógica, como ciência do entendimento conceptual. Mas em meados do século XVIII, a estética surgiu como uma nova disciplina filosófica, como a teoria do Belo e da Arte.” (MARCUSE, p. 157)

A Estética, a partir do século XVIII, se torna irmã gêmea da Lógica, deixa de se relacionar aos sentidos e fica restrita e cativa à ciência da beleza e da arte.

Existem, na humanidade, dois impulsos polares que não poderiam ser separados ou hierarquizados: 1. O impulso sensual, 2. O impulso racional.

Da mesma forma como o corpo, até agora, em pleno século XXI, é considerado como tabu, em detrimento da Mente, o falso antagonismo entre razão e sentimento estético é a dominante da nossa civilização.

E enquanto nossa teimosia histórica persistir, taxando as paixões humanas como o vício mais execrável e pecaminoso e sempre reforçando a necessidade de cultivar apenas a razão como princípio único para o avanço da cultura, estaremos fadados às mais diversas doenças psíquicas, pois reprimir a capacidade humana de sentir é a principal causa da nossa decadência.

“(…) na civilização estabelecida, a sua relação tem sido antagônica; em vez de reconciliar ambos os impulsos, tornando a sensualidade racional e a razão sensual, a civilização submeteu a sensualidade à razão de modo tal que a primeira, se acaso logra reafirmar-se, o faz através de formas destrutivas e “selvagens”, enquanto a tirania da razão empobrece e barbariza a sensualidade” (MARCUSE, p. 161)

É um problema político mais do que só conceitual, libertar a estética da tirania da razão, principalmente da razão das economias de mercado, pois se é possível manipular a parte mais íntima dos sujeitos, sua capacidade de sentir, seus desejos (o prazer que podem ou não podem sentir), é possível manter uma sociedade desigual, indiferente e sem empatia alguma. As consequências disso são cada vez mais escancaradas quando observamos o crescente avanço da desinformação, do desprezo pelos mortos, da alienação e, por último, mas não menos importante, da quantidade de pessoas incapazes de expressar seus verdadeiros sentimentos, se escondendo atrás de celulares, se exibindo com fotos editadas, se manifestando nas redes sociais como bem-sucedidas, sem sofrimento, sem defeitos.

Nossa sociedade está doente, a solução dessa doença está mais próxima do que pensamos: precisamos dar mais atenção aos nossos sentimentos, procurar prazeres que nos fazem bem e que nos libertem da ditadura da razão, precisamos ouvir a nós mesmos e perceber o mundo por meio da afetividade.

Referência Bibliográfica:

MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Trad. Álvaro Cabral. Círculo do Livro.

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