Estamos todos cansados

Ivanildo Jesus

A Beleza do Som
A Beleza do Som
7 min readFeb 27, 2022

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Depois de dois anos indo e voltando do confinamento tivemos vacina, e mesmo para os que não acreditam — afinal vacinação virou dogma de fé — a coisa teve efeito e demos início ao dito novo normal. Estamos no carnaval de 22 e parece que começamos a retomar as atividades de outrora. Mesmo sem carnaval de rua de fato — enquanto ricos têm acesso livre à festas privadas, servidos por pobres -, as aglomerações seguem a todo vapor. Eu sei, nesse momento aqueles que possuem o monopólio da virtude pandêmica se insurgirão. Aconselho que se acalmem, no desastre que foi a condução dessa crise, o furor da virtude sanitária é o que resta aos que têm a mínima ciência da situação, embora, infelizmente, o tamanho da nossa revolta individual não tenha alcançado o logro da salvação coletiva. Quem é de festas festejou, festeja e festejará. Quem, como eu, é dos que pula O carnaval se verá às voltas com atividades pedagógicas e textos que não se escreverão sozinhos.

No início da pandemia eu que sou dessa classe que se não trabalha não come, aceitei todos os trabalhos possíveis. A jornada de trabalho fora deu lugar à jornada excruciante na frente da tela. Aulas online, podcast, textos, edição, gravação, revisão e mosaicos (aqueles vídeos com vários músicos no quadrado, como na canção “cada um no seu quadrado”). Um universo de atividades no quarto, como se estivéssemos todos de castigo, o que não deixa de ser em parte verdade. Lembro de no primeiro mês fazer planos para viajar em um futuro breve. Os meses passaram e com o orçamento da viagem comprei uma cadeira e um notebook melhor, de onde agora lhes escrevo.

Esse frenesi de atividades não era o habitual. Logo vi que em casa, sem tempo de translado, e podendo almoçar em 15 minutos, podia aumentar as horas de trabalho. Acordando no mesmo horário, oito horas de trabalho facilmente viraram dez, e porque não doze. Dinheiro na conta. Poupança. O ato, não o investimento. O horizonte que se descortinava era a cada dia pior. Morte para todo o lado. O fantasma do possível desemprego sussurrava ao pé do ouvido: Trabalho, trabalho e trabalho.

Fote de Luis Villasmil

Foram anos em casa, trabalhando mais do que se estivesse fora. Longe de todos. Nas aulas online as crianças não ligavam a câmera, isso quando apareciam. Quando não apareciam a situação era ainda mais desoladora. Inquiridos sobre as ausências diziam: “Ah, professor, em casa só temos um telefone, a gente tem que revezar” ou “É que acabou o nosso pacote de dados”. Sem esquecer os que precisaram lidar com o luto.

E assim foi. Tempo extenuante de dar o máximo de si, sem ter o mínimo de volta. Entretanto, distante desse martírio o inominável continuava a rir da nossa desgraça. Toda vez que o menciono sinto vontade de fazer como na série Game of Thrones. Quando a rainha Daenerys — interpretada pela talentosa Emilia Clarke — era apresentada, seguia junto seus feitos e títulos, algo como: Daenerys da Casa Targaryen, Primeira de seu nome, Nascida da tormenta, A não queimada, Mãe dos Dragões, Quebradora das correntes, Mãe dos escravos, Khaleesi dos Dothraki, Rainha de Mereen, Rainha de Westeros, Dos Ândalos, Dos Roinares. Com o comedor de pão com leite condensado acredito que deveria ser o mesmo. Para uma ajuda rápida na extensão dessa suposta apresentação recomendo o leitor a dar uma passada no texto “Bolsonaro” da Mariliz Pereira Jorge e depois no título “Novas definições para Bolsonaro” de Ruy Castro ambos publicados na Folha de São Paulo.

Continuemos. Você, querido leitor, se aqui está é sinal que passou por esse abismo. E, se compartilhamos a mesma classe dos que se não trabalham, não comem, você também chegou a 22 cansado. O mundo anunciava com justa felicidade a tão aguardada volta: a reorganização das agendas; o contato presencial com os nossos pares; porém, mesmo com todo esse ânimo externo parte desse cansaço indizível continuava lá, dentro, como se incrustado na pele.

Antes de lhes falar mais sobre o cansaço, me permitam contar mais um dos nossos episódios tragicômicos que elucidam as causas por trás do nosso cansaço.

André Porciuncula é Secretário Nacional de Incentivo e Fomento à Cultura — Lei Rouanet / Capitão da PM-BA. A primeira coisa que me ocorre é como e por que um capitão da PM-BA se torna secretário de incentivo à cultura. Se por um lado isso não faz sentido, de outro nada mais coerente. Acredito veemente que a cultura incentivada por Porciuncula seja a do extermínio, portanto faz todo sentido que os guerreiros na cruzada pelo flagelo da mamata, e dos mamateiros, sejam capitães da PM.

Ao explicar as recentes alterações na Lei Rouanet, Porciuncula fez a declaração acima. A confusão é tamanha que tenho dificuldade em achar o ponto de explicação para desenrolar o novelo da peça trágica. Um músico de orquestra, duas apresentações por dia, cinco dias na semana… Toco em orquestra há alguns bons anos, estudei com professores que fizeram sua vida nas filas orquestrais, nunca presenciei um ritmo de apresentações como o exemplificado pelo secretário. Mas, vá lá, talvez o capitão da PM esteja só querendo ser didático, algo que sem um rifle na mão lhe deva ser um pouco complicado. Agora vem outro disparate. De onde Porciuncula tira essas cifras. Se meu cálculo estiver correto, um músico, de orquestra cabe ressaltar, ganharia o valor de R$3.500,00 por hora. Confesso que por instantes perdi-me nos devaneios de onde essa remuneração me levaria.

Porciuncula deve desconhecer um senhor chamado Freire, para o educador exemplos com fins didáticos devem vir acompanhados da materialidade do educando, pois só assim tocamos a subjetividade do sujeito. Esses exemplos destoam de forma cruel da vida do músico orquestral. As orquestras, em franco declínio, quiçá conseguem remunerar músicos com esse valor por trabalhos mensais que vão além do ritmo exemplificado. A crueldade do nosso algoz é de uma vileza ímpar. Citar a quem constantemente lida com o fechamento de portas e a derrocada de trabalhos como se fossem marajás e oportunistas, expõe o que há de abjeto no interior do secretário.

Há uma infinidade de questões que margeiam o descalabro do exemplo trazido, como do valor subjetivo da arte, Lei Rouanet e o ódio à classe artística. Falaremos disso no futuro. Voltemos ao cansaço.

Leio nesses dias Lacan e a Democracia de Christian Dunker, lançamento recente da editora Boitempo. No livro o autor traça paralelos entre os conceitos da obra Lacaniana que devem nos ajudar a passar pelo maremoto político desse atual Estado “democrático”. Um dos insights que me ocorreram vem após a leitura de um trecho da introdução. Dunker diz: “Uma política que subverta o campo de conformação dos discursos e da ocupação do espaço público por meio da força e da sugestão. Tal política teria o sonho como modelo e a realização do desejo como fim. Tal política seria chamada de oniropolítica”. Como eu, o autor parece ter uma predileção por escrever de forma complicada. Contudo, depreendo desse fragmento e de outras observações as causas do nossa exaustão. Chegamos ao quarto — e espero que último — ano do desgoverno Bolsonaro. Veio a pandemia, ele não caiu. Veio a CPI, ele não caiu. A alta nos combustíveis, nos alimentos, nos preços, as denúncias, não interessa. Ele não caiu e não vai cair. A derrota precisará vir através das urnas. Entretanto, para além do processo político, estamos cansados. Riram e riem dos nossos mortos e continuamos trabalhando. A sobrevivência dessa experiência apocalíptica nos deixou anestesiados. Em uma espécie de transe, nos encontramos mais dormindo do que acordados. O único gigante que se levanta cotidianamente do nosso peito é o cansaço.

Estamos todos nesse estado de fadiga constante porque nos falta sonho. Nos falta um horizonte possível de afetos intensamente cultivados. A felicidade parece insistir em não vir. O gozo trazido pelas anedotas dessa tragicomédia não logra a manutenção de uma alegria duradoura. Perdemos parte da capacidade de esperança e por isso estamos todos cansados. Aparentemente, nos encontramos cerceados de um futuro próspero, legados à sobrevivência com o macabro. Trabalhamos como se não houvesse amanhã, para um amanhã amargo já despedaçado. Eu sei, você também sabe. Nos sentimos todos assim. Órfãos do sonho, entregues ao escárnio dos nossos algozes, relegados ao descaso.

Sonhemos querido leitor. Se possível, trabalhe menos. Deixe um pouco para os outros. Acredite, há muitos por aí precisando. Como canta Clara Nunes:

O sol….há de brilhar mais uma vez
A luz….há de chegar aos corações
Do mal….será queimada a semente
O amor…será eterno novamente
O amor…será eterno novamente
É o Juízo Final, a história do bem e do mal
Quero ter olhos pra ver, a maldade desaparecer

Que a oniropolítica dita por Christian volte a ser possível em 22.

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