Eu sou egoísta

Gustavo Santana

A Beleza do Som
A Beleza do Som
3 min readOct 1, 2023

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Foto de Isaac Ibbott retirada do Unsplash

São 9h da manhã de um dia qualquer
Eu entro na sala que reservei pra estudar, abro minhas coisas, coloco a partitura na estante e me organizo pra iniciar o estudo
Alongamento, análise sobre as coisas a estudar
Enquanto isso, ouço diversos instrumentos nas salas ao lado, alguns tocam forte, outros nem tanto, alguns tocam com muita fluidez e outros claramente ainda estão aprendendo determinada peça
Afino mais uma vez a minha corda ré que cisma em oscilar a afinação
É o calor, penso
Muitas mudanças climáticas, o mundo realmente está descontrolado…
Depois do estudo, aulas teóricas
Depois das aulas teóricas, almoçar
Em uma barraca de tapioca, enquanto olho para o cardápio, mesmo sabendo que meu pedido será o mesmo de sempre, sou abordado por dois jovens,
não são alunos da universidade, mas estão ali pedindo ajuda financeira ou então que eu os compre algum alimento…
O mundo realmente é muito injusto e complexo, penso

Faço a digestão e então retorno para a pequena sala para — por longos minutos -tentar resolver a articulação dos meus dedos
naquele instante, me parece um grande problema
uma grande questão…

Nas salas ao lado, pessoas permanecem quebrando suas cabeças também com seus respectivos instrumentos,
respirações erradas, articulações desconexas, fraseados mal elaborados
Enquanto olho para a minha partitura da Quinta Sinfonía de Beethoven, penso que somos todos egoístas
egocêntricos
ego

Horas e horas com o único objetivo de se aprimorar
nenhum aparente problema real
nenhuma solução de crise climática ou social

Apenas um violinista em um barco a afundar
Por um instante me desconecto da paixão pelo fazer
e tudo parece carregado da ausência de significado,
talvez eu devesse seguir outros caminhos e encarar os problemas do mundo, mudar de profissão, talvez

Parece que seguir tocando apenas homens brancos europeus e me torturando a respeito dos meus próprios problemas técnicos e motores não é a maior das revoluções possíveis nesse mundo

Em meio a isso, passam-se os dias, ensaio da Sinfonia, mais momentos solitários de estudo, o ritmo frenético das pequenas correções com gosto de grandes guerras

Chega o dia do concerto
No mesmo auditório em que sempre tocamos
Há um certo ar de ansiedade em toda a orquestra
tocar uma peça tão canônica é sempre uma experiência
tenho receio de errar aqueles benditos trechos
“e se meu vibrato não for tão intenso como o maestro pediu?”
Sou egoísta

Terminamos a passagem de som e então o público começa a chegar
Me espanto
Nunca vi aquele tão rotineiro auditório tão cheio, pessoas sentadas nos degraus…
O maestro começa o concerto
chega o momento da sinfonia
diante daquelas frases tão conhecidas, o público está hipnotizado
eu também estou
a energia de toda a orquestra me surpreende
poucas vezes fomos tão intensos
vejo pessoas emocionadas olhando cada frase que construímos

Acaba o concerto
o público aplaude energicamente
eu sorrio
não sei se não há em todos nós um nível de egoísmo
Efetivamente passamos muito tempo apenas voltado para nosso reflexo
mas de fato há em todos nós um alto nível de capacidade de mudar
emocionar

Vou dormir
afinal, amanhã é um novo dia
e novos pequenos e egoístas problemas técnicos e musicais me aguardam na mesma sala de estudo de sempre

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