Fechamento de ciclos

Ivanildo Jesus

A Beleza do Som
A Beleza do Som
5 min readNov 26, 2023

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São 9:03 da manhã, chego atrasado para aula, ela me aguarda na sala de espera, sentada. De um lado, seu violino, o amigo inseparável. O estojo, quase do tamanho dela, é carregado como se fosse um grande urso de pelúcia. Seu pequeno violino é quase um pet, ela faz dele seu grande amigo.

“São 9:03, professor, você está atrasado” — me diz, com olhos sérios e exigentes, atrás do seu — frequente esquecido — óculos de armação vermelha. “Desculpa, flor, tinha uma carreta na estrada” — digo, sem a convencer. Começamos a aula e ela, de cara amarrada, trava uma luta interna, decidindo entre me castigar pelo atraso e correr para vir conversar. Peço seu violino para afinar, ela me traz ainda relutante. No começo da aula nós aquecemos o corpo e, sobretudo, a língua, fofocamos como amigos que não se vêem há algum tempo. Ela e as colegas me contam da semana, dos pormenores da escola, passeios e afins.

“Professor, essa semana briguei com as minhas melhores amigas na escola” — franzo o cenho e pergunto: “Como assim? O que aconteceu? Conte-me tudo!?”. Ela desata a falar, quase sem respirar, conta da briga, os motivos, os detalhes, me faz parte da sua vida, como se, na ânsia de viver precisasse me deixar a par da sua existência. Este é o nosso momento de “amigaaaa nem te conto”, contasse então tudo e mais um pouco.
Fofocamos, rimos, brincamos, até começar a aula. Exercícios para empunhadura, escala, diferentes ritmos, um desafio ou outro. Ela, já tendo ganho meu afeto e conhecendo meus limites, quando inicio uma música nova para, bufa e solta o famoso “isso é impossível”. Vencer a impossibilidade faz parte do processo, progredir, aprender movimentos, trabalhar a memória, percepção, cognição e motricidade, na idade dela, é um desafio sem fim, tem coisa que, a priori, é impossível mesmo, porém, como dizia o poeta, o impossível é só questão de opinião.

Temos muitos problemas com a pegada de arco, eu corrijo, refaço os exercícios, corrijo e corrijo. Em questão de segundos, assim que meus olhos fogem do arco, ela volta à pegada peculiar. Pego no pé novamente, ela arruma, é briga constante, faz parte.

Dia desses, conversando durante a aula, falei da expectativa para as férias que se descortina. Ela disse que não quer férias, ainda acrescenta: “eu queria que tivesse aula de violino todos os dias”. Me ganha, lógico. Reconheço a validade dos nossos encontros e a sintonia dos nossos afetos. Nossos momentos são sempre lúdicos e repletos de novidades. Ela me conta do seu mundo, do seu gosto por Ana Castela, me fala da avó que chorou na abertura do UP Altas Aventuras. Eu falo sobre o meu, toco trechos de músicas que me fascinam, falo dos sons combinados que me fazem brilhar os olhos, digo que ainda não vi Moana e Divertidamente, quase envergonhado pela falta de repertório.

Tento, durante o aprendizado, fazer pensar, aproveito cada palavra inventada, até as curiosidades mínimas. Lembro de quando me perguntaram porque não movemos o violino ao invés do arco, uma genialidade ímpar. Aprendo enquanto dou aula.

Gosto de deixá-los tocar, pego pouco no violino durante a aula, só quando é necessário, se não os pedidos de música não cessam. Em um dos recitais esse ano, para encorajá-las, ela e as colegas, toquei algo do meu repertório, algo que fosse também um desafio para mim, do mesmo jeito que elas tinham seus desafios. Após a performance, recebi dela um elogio pouco inusitado: “professor, que inveja, eu queria tocar assim”. Sorrio sem graça.

Ela não falta às aulas, só quando está doente. Vez outra calha dela vir enquanto as colegas resolvem tirar um recesso precipitado. A ocasião, na sua percepção, enseja as melhores aulas: quando ela me tem cativo e todo ouvidos. Sabendo da sua pegada de arco singular, fazemos então a nossa aula de “arcoterapia”. Movimentos e mais movimentos, exercícios e mais exercícios, conversa e mais conversa, até que sem perceber, nossa aula passou.

Nosso convívio já ultrapassa os dois anos. Nos afeiçoamos um ao outro. Isso nem sempre dá certo. Tem aluno que faz da gente parte da sua vida, da sua expectativa e felicidade. Outros, passam mais incólumes pelo processo, é natural, faz parte. Ser professor é saber que trabalhamos pela nossa extinção, trabalhamos por um dia não ser mais necessários no processo do aluno. Quando somos exitosos no que fazemos, permitimos que os alunos sigam seu fluxo e encontrem novos desafios.

Todos devem conhecer algum professor ou professora que é especialista em segunda série. Ela domina aquele conteúdo com maestria e ensina com devoção, sendo impossível não se encantar pela sua técnica, mas, além da admiração, é necessário ver que a segunda série tem seu momento e, para que ela possa encantar outros, é necessário ir, dando vez a quem vem.

Foto de Ketut Subiyanto

No próximo ano vai calhar de não nos vermos mais, eu e a minha aluninha peralta, meu relógio de ponto. O destino traçou outro rumo e nosso contato semanal cessará. Como não sinto que é hora desse momento, tento, junto à mãe, sem sucesso, achar outra alternativa. A notícia traz pesar, choro, emoção e afeto. Ela aprendeu através do nosso contato a amar o violino, a vencer através da insistência o impossível, a enfrentar o palco, encontrou na nossa pequena experiência sua música favorita, a que consegue tocar até o final, sozinha, na frente de todos.

Quando a gente dá aula e consegue transmitir ao aluno o fascínio pel’a beleza do som, é êxito sem fim. A música entra na vida do aprendente para não mais sair. O som faz sentido, as bolinhas pretas nas linhas fazem sentido, um pedaço de madeira com cordas de metal faz sentido, a vida faz sentido. Isso nem sempre acontece, entretanto, quando acontece, é loteria. Nosso encontro que cessará é loteria que se perde.

Ser professor é saber fechar ciclos, é saber se fazer desnecessário, é dominar a arte do adeus e achar graça na própria inutilidade conquistada com muito trabalho. Quando isso acontece é felicidade estranha, tristeza alegre e esperança renovada. Tem vez que a vida nos obriga à barra dupla, a terminar o compasso e a concluir a frase de forma precipitada. Não há o que fazer, é entender que na vida, assim como na música, tudo tem hora para acontecer. Não devemos correr e nem atrasar, é necessário respeitar as pausas e aproveitar cada nota com afinco, para quando a melodia precipitar a terminar, nos restar uma antecipada saudade.

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