Felicidade

Ivanildo Jesus

A Beleza do Som
A Beleza do Som
6 min readJul 2, 2023

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Felicidade é uma palavra estranha no vocabulário do músico, principalmente do músico que se diz “erudito”, já que o saber, como adverte o eclesiastes, nos impõe sofrimento, felicidade parece uma conquista distante, estranha, uma palavra com gosto inédito, cujo sabor se assemelha à ambrosia para o nosso paladar já habituado à tristeza proveniente do enfado. Contudo, mesmo sabendo dessas intercorrências, declaro, não sem certo medo que, por esses dias eu estou assim, tanto quanto posso, feliz.

Como sei que a materialidade do operário cultural rouba o tempo e as possibilidades de felicidade, sou um gatuno — transgrido o roubo — pois, mesmo precarizado, estou por esses dias, feliz. Esse fato inédito tem me pesado com assombro. Como assim, feliz? Cinco trabalhos, quatro cidades diferentes na semana, uma porção de coisas para estudar, a última série que acompanhei remonta à antiguidade clássica, se passo mais de quinze minutos no sofá, durmo. Dirijo, dirijo e dirijo. Então como posso, a partir de um frenesi incessante de labor, estar às voltas com a felicidade? Talvez seja o frescor antes do completo declínio da pouca sanidade que me resta, porém advirto-lhes que não. Conto-lhes um pouco das minhas trocas e vejam se posso ser outra coisa além de feliz.

Imagem de Ketut Subiyanto retirada do Pexels

Crianças

Dia desses disseram-me que sou bom com as crianças, na boca delas meu nome vira pilhéria, as alcunhas mudam conforme o humor dos discentes; vou no mesmo dia de tio a Vionildo, entretanto, falando das alcunhas, sinto um orgulho danado quando eles usam a impessoalidade do “fessor”. Eu sou um profissional da educação pouco ortodoxo, como é possível entrever pelos meus escritos. Apesar de uma memória pós-covid, depois de algum tempo guardo os nomes dos meus educandos e vou além, ouço com ouvidos abertos quando eles me falam sobre suas vidas, quando os adolescentes me detém sobre seus enlaces amorosos, ouço parte dos conflitos familiares, pondero, quando necessário intervenho até onde minha mão alcança, contudo, percebo que mais que qualquer fazer, ouvi-los de fato é o milagre que preciso.

A quem me disse que sou bom com crianças respondi dizendo que não, pelo contrário, elas quem são boas comigo.

Trezentos reais

Quando se é um professor que escreve recorrentemente sobre sua atividade laboral, o que é ou não ser um bom professor, sobre um prisma pessoal, minha práxis — no sentido Freireano do termo — ganha outros contornos. Se o discurso que disponho aqui aliena-se da minha prática, resta-me a máxima das redes: “enfim, a hipocrisia”. Como não quero cair no abismo dos hipócritas, tento desvencilhar-me de práticas que se distanciam da pluralidade das ideias que comungo.

Digo-lhes isso pois, semanas atrás meu estupor foi perturbado pela procura de um professor que pudesse me ajudar na preparação de um concurso que se descortina. Depois de matutar algum tempo, fui atrás de professores que gosto ou que colegas indicaram, que pudessem me ajudar a navegar pelo terreno baldio da minha técnica. Fiz alguns contatos, em sua maioria todos ocupados; segui, lembrei de uma professora excelente, técnica primorosa, dessas que, como disse um colega: “caga pouco na cabeça de gente”, e, depois do contato feito, recebo o preço: trezentos reais a aula.

Antes de falar sobre o valor, cabe discorrer um pouco sobre um aspecto que me incomoda. Adendo, meus incômodos são meus, não seus, se não te fazem sentido, ótimo, não nasci para agradá-lo. Continuo. Na minha procura por um professor de violino, assustou-me uma moda que agora parece prática recorrente: a venda de cursos. Parece que ninguém oferece mais aulas, vende-se curso. Grava-se um tanto de aulas com temas elencados a partir de um roteiro pré-fixado pelo professor e oferece-se o guia básico, intermediário, ou, dos disparates que já vi, o mais aviltante: “não erre mais o Mozart”; precifica-se a ação e expõe-se os conceitos no buffet pedagógico do violinismo.

Longe de desmerecer quem divulga seus préstimos nas redes e o faz com um cuidado soberbo, falando sobre violino, trajetória e aulas, todavia, observo que, o mercantilismo educacional incomoda-me. Educação a distância, no meu parco entender, não deve ser o mesmo que distância da educação. Essa modalidade de aulas assíncronas são bons suportes pedagógicos, entretanto, nada substitui a figura de um professor com ouvidos atentos semanais, prestando atenção às suas urgências. Um modelo pré-estabelecido de conteúdo programático genérico não te ouve, é um conteúdo que só pede por ser ouvido. Portanto, desagrada-me a figura de ouvidos fechados.

Professor bom é o que lá está e te ouve, de preferência, retomando a máxima do meu amigo, “que não cague muita merda na sua cabeça”. Outro motivo de felicidade, depois do desconforto da busca, achei-o — o professor que pouco caga — resta agora só o trabalho. Quanto aos trezentos reais da aula, que não é o caso do tutor que me acompanha — dou graças — observo também que alguns de nós distanciaram-se sobremaneira das urgências de um contemporâneo prenhe das mais diversas vulnerabilidades. Não é o preço da aula que me incomoda, mas sim os valores escondidos atrás da quantia.

Depois de ouvir o preço da aula, lembro do inefável meme do repertório brasileiro: uma calça para uma jovem de dezesseis anos é mais de trezentos reais. A escolha que apresenta-se hoje é vestir-se ou melhorar sua técnica. Por pouco não fiquei nu.

Afetos

Digo aos adolescentes sempre que posso sobre o perigo dos afetos soterrados. Exorto-os que não acumulem discordâncias, que não façam poupança de sofreguidão e, sobretudo, que quando se veem enamorados, não sintam vergonha de dizê-lo. Nada mais corajoso do que o ridículo de quem escreve cartas de amor. Eles, animados pela minha validação, vivem então as fluências de suas adolescências. Ouço-lhes, então, com um ouvido interessadíssimo: “fessor, a arroba aceitou tomar um sorvete comigo” ou “depois de dizer tudo que sinto, o fulano correu”, respondo então “ótimo, enfim, um livramento”.

Validá-los do ponto de vista dos afetos, faz parte, acredito, do meu papel não só de professor, mas de artista. Ora digo-lhes: declarem-se, digam o que sentem. Outrora falo-lhes: afinem melhor, cuidado com o tempo, não acentuem a terminação de frase, relaxem e não enforquem o violino. No final das contas, é tudo a mesma coisa. Aprender a dizer que ama, com e sem o instrumento.

Resposta

Ainda antes de escrever para o periódico dominical, fui atravessado pela felicidade ímpar da resposta do coletivo Frequência Dissonante à revista Concerto. No texto “Isabel Leonard confirma fama em concerto na Sala São Paulo”, o articulista Irineu Franco Perpétuo cai no infeliz lugar comum ao estereotipar o papel feminino da mezzo, dando-lhe recortes de “sensualidade sem vulgaridade”.

Vulgaridade parece ser uma palavra banida pela mezzo de seu vocabulário artístico e, quem tivesse qualquer dúvida a respeito, pôde dirimi-la nos dois itens da Carmen, de Bizet, a Habanera e a Seguidilla. Leonard impregnou-as da devida sensualidade sem, contudo, recair nos exageros gestuais aos quais mais de uma de suas colegas não consegue resistir”, escreveu Irineu Franco Perpétuo.

Como já bem disse o Coletivo, a crítica educa. Uma crítica com recortes misóginos, sem uma resposta que a responsabilize, entre para a história sem a oposição necessária, tornando-se a opinião dos viventes. Nada mais indigno. Há dissonância no meio musical e ela nos tem salvo da consonância preguiçosa de uma hegemonia desconcertante.

Bagunça

Enquanto escrevo-lhes, no cômodo ao lado meu namorado canta — não, eu definitivamente não namoro um cantor. Talvez alguns falarão dos perigos da poluição sonora, dir-lhe-eis que meus ouvidos abertos que lutem. A felicidade de me ter o impõe o confronto de, no sábado à noite, roubar um tanto da nossa vida a dois para escrever-lhes esse texto. À felicidade de tê-lo, um pouco de poluição sonora é um preço razoável a ser pago.

Se hoje meus escritos estão um pouco desordenados, desculpo-me pela bagunça, estou constantemente em reforma de mim mesmo. Esse movimento de construir-me e reconstruir-me, tão necessário à fugaz liquidez da contemporaneidade, me é também uma fonte de felicidade.

Diz Vaz:

A Felicidade,
ainda que tardia,
deve ser conquistada.
E que ninguém mais aceite
as migalhas do cotidiano.

Dizem também os jovens: “Deus, te pedi uma refeição e você me deu um banquete”. Hoje o presente é um presente e a infelicidade está inelegível. O cotidiano me oferece banquetes, sendo que outrora já me ofereceu migalhas. Não há no momento outra possibilidade de ser, se não feliz.

Bom domingo!

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