Legítima defesa

Samuel Mello

A Beleza do Som
A Beleza do Som
3 min readApr 9, 2023

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No balançar de um micro-ônibus embrenhando-se na zona leste de São Paulo, resolvo escrever sobre a coragem.

Abundam os motivos para desistir.

Aquela beleza que só a música tem, de provocar amores indescritíveis, ódios irremediáveis, saudades de coisas que não se viveu, foi substituída por uma função mecânica muito específica: relaxar ou dançar! Pior ainda: pagar as contas todo início de mês.

Graças ao instinto (instinto? Alô Durkheim, me ajuda aqui…) de sobrevivência, nós nos submetemos às atividades laborais que não fazem sentido ou, ainda pior, que não acreditamos para, honradamente, manter um teto sobre a cabeça e um suprimento alimentar no peristaltismo digestório.

Aí, num chuvoso sábado de aleluia, você se pergunta: “o que eu estou fazendo da minha vida?” Percebe que o castelo que, com cinco ou seis retas, você desenhou, já se descoloriu. Em vez de um sol amarelo, o que você desenha é um sorriso amarelo para aparecer bem nos cabides de açougue (que são as redes sociais), esperando que algum cliente veja se seus músculos estão no ponto para serem moídos.

Você, então, num lampejo de orgulho e coragem, decide: eu mereço mais que isso!

Imagem de Snapwire retirada do Pexels

Empreende uma luta com seu eu pessoal e seu eu social para fazer valer os motivos que te catapultaram até aqui. Os burros te chamam de louco, mas você inventa um concerto solo. “Onde você arrumou essa partitura?”, “minha professora nunca me deixaria tocar esse concerto agora!”, são comentários corriqueiros. Mais sofisticados são outros como: “nossa, que repertório ‘obscuro’ que você escolhe, né?”; sutis críticas construtivas de quem nunca construiu nada, como milhares de gravações de mestres do passado, vídeos de grandes do presente para poder me lembrar, “aí ó, tem que ser assim, senão não serve”. Dane-se o solfejo, dane-se o andamento, dane-se a análise, tem que requentar o morto para poder ter sabor. Como se a Sadia vendesse lasanha de música para micro-ondas. (Nem todo o músico, mas sempre um músico…)

Você faz o concerto, pega a gravação e, veja só: só tem defeitos! (Síndrome do impostor ou noção da realidade?). Você se orgulha do feito e, nos dias seguintes, assiste várias vezes a própria gravação; começa a admirar não sua afinação, não seu fraseado, não suas defeituosas mudanças de posição, mas sua coragem de subir no palco da sua própria vida, fincar alí uma bandeira e dizer que, apesar de todas as “burrocracias” e mediocridades correlatas: EU AINDA SOU MÚSICO!

Aí, você recebe uma ligação de cobrança, toma um gole da bebida mais vagabunda que seu dinheiro pôde comprar e vai cometer esperança estudando o maldito scherzo do Schumann…

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