Música é linguagem, afinal?
Juliana Christmann
Eis uma acalorada discussão no meio acadêmico musical. Negar que a música seja uma linguagem é algo que vem, muitas vezes, em resposta ao incômodo causado pela tão repetida e romantizada frase “a música é uma linguagem universal”. Não vou adentrar, por ora, na problemática da ideia ocidentalizada e das questões sócio-históricas e políticas que envolvem essa afirmação, mas pretendo manter o foco na importância do conhecimento especializado dos conceitos envolvidos para que a construção da argumentação proposta tenha sólidos alicerces epistemológicos. Do contrário, é possível que haja uma grande confusão entre os conceitos de língua, linguagem, comunicação e até mesmo o conceito de música. O desconhecimento desses conceitos e suas diferenças implicam na dificuldade em reconhecer o lugar onde a música se encaixa enquanto prática social humana.
O que é Linguagem, afinal?
Para que possamos refletir melhor sobre esses conceitos e suas relações, faremos um breve passeio epistemológico que nos conduzirá (espero) ao ponto em que a música e a linguagem se mostrarão como sistemas que compartilham elementos em comum. Guardemos, por ora, essa informação para que possamos digeri-la melhor mais adiante.
Definiremos primeiramente a linguagem e o faremos tendo a linguística como base e delimitação. Base, porque a linguística é, por definição, a ciência que estuda a linguagem humana. Delimitação, porque o uso não especializado dos termos linguagem e língua (que não são a mesma coisa) é o grande causador de tantas confusões. Por isso, não consideraremos o uso do termo linguagem na forma em que ele é trazido pelo senso comum.
As tão diversas línguas naturais são a manifestação social de algo mais geral: a linguagem. Linguagem é a capacidade específica da espécie humana de se comunicar por meio das línguas. A linguagem distingue os seres humanos dos outros animais. Isso não significa que demais espécies não humanas não possam se comunicar. Ao contrário, diversas espécies desenvolveram sistemas muito sofisticados de comunicação sonora ou visual, mas não apresentam requisitos da linguagem, que listaremos mais adiante. Ou seja, animais não têm linguagem, mas sistemas de códigos, de sinais de sentido fixo, de transmissão unilateral, que não se deixam analisar em unidades menores e, principalmente, não apresentam dois princípios que regem a linguagem humana: a criatividade e a recursividade. Por recursividade, em linguística, entendemos a infinitude de combinações que podem ocorrer entre os elementos linguísticos, assim como em séries numéricas. Ainda que algumas espécies não humanas possam aprender a reagir a signos humanos, tanto verbais quanto visuais, não são capazes de desenvolver recursividade. Ao menos, os estudos atuais ainda não puderam identificá-la.
Linguagem não é língua.
A língua é parte essencial da linguagem e é um sistema interno à mente humana, mas que se manifesta na interação. Ela é um instrumento de comunicação humana que representa uma estrutura de pensamento. Enquanto maneira de perceber o mundo, a linguagem, através das línguas, atribui nomes às coisas que fazem parte da nossa realidade e só se pode apreender a realidade quando se sabe o que as coisas são. As coisas só existem quando são nomeadas. Logo, enquanto atividade simbólica, as palavras criam conceitos que ordenam e categorizam a realidade. A partir daí, as palavras vão formando sistemas independentes, as línguas, que poderão exprimir os diferentes modos de perceber o mundo.
Como qualquer área do saber, a linguística pode, sim, apresentar diversas escolas de pensamento, mas a que seguirei aqui, por ser a linha de pesquisa à qual me dedico (biolinguística), entende a linguagem como uma ciência cognitiva, pois está radicada na mente/cérebro. Linguagem é sempre apresentada no singular. Seu uso não especializado pode empregar até o termo no plural (linguagens), mas funcionará sempre como uma metáfora. Para Chomsky, um dos principais linguistas do nosso tempo, “não se pode falar de ’relações’ entre Linguística e Psicologia, pois a Linguística faz parte da Psicologia e, de forma mais ampla, da Biologia”. Chomsky definiu dois conceitos ao definir o conceito de língua: competência e desempenho. Por competência, entendemos o conhecimento linguístico que permite a fluência de um falante-ouvinte em sua língua nativa. Já o desempenho se refere ao uso linguístico do falante-ouvinte em situações concretas, ou seja, os enunciados que ele produz e seu entendimento do que os outros dizem. Para a linguística, a língua interessa enquanto competência, como sistema internalizado (parte da mente).
E a música? Onde se encaixa?
Passemos à definição de música, que pode ser tão complexa quanto as definições de língua e linguagem.
Assim como existem confusões causadas pelo uso não especializado dos termos língua e linguagem, vemos constantemente o termo música ser aplicado a fenômenos sonoros da natureza que são meramente fenômenos acústicos, objetos da bioacústica. É aí que mora a confusão: música, assim como as línguas (excluindo-se as línguas de sinais), implica em um sistema construído a partir de fenômenos acústicos, tendo o som como grande matéria prima. Dentre essas matérias primas, temos o tempo e a frequência. Qualquer som emitido na natureza fará uso desses elementos, mas sua manifestação, pura e simplesmente pelo fato de acontecer, não é suficiente para que os caracterizemos como música ou como língua/linguagem.
Em uma breve pesquisa, encontraremos diversas variáveis no conceito de música. Para relevância da nossa discussão, trago uma interessante definição elaborada por Thomas Clifton (1983): “uma organização de sons e silêncio cujo sentido é preservativo, ao invés de denotativo”. A improvisação se insere como instrumento de atualização, revisão e acréscimo, mas parte de elementos pré-existentes.
As línguas naturais tem, como importante caracterizador, o sistema de dupla articulação. Isso significa que a estrutura das línguas prevê, inicialmente, a articulação de elementos mínimos não significativos (sons, fonemas) em estruturas maiores também não significativas (sílabas), que vão se articulando para formar elementos significativos distintivos (morfemas e palavras) até estruturas maiores, como sentenças. Claramente, podemos atribuir uma primeira articulação ao sistema musical (notas, ritmo, etc), mas não podemos ter certeza de uma segunda articulação, onde se estabeleceria um léxico. Em um nível sintático, é necessário haver léxico para haver uma sintaxe, já que esta é formada a partir da organização dos morfemas e palavras (léxico). Com isso, vemos que, ainda que língua, linguagem e música possam ter elementos passíveis de analogias, e que todas têm condições de se comunicar, a música não prevê a interação através da enunciação.
A música, então, não é capaz de transmitir símbolos? Sim! A música também é um sistema de sinais sonoros. No entanto, nesse momento, cabe conhecermos a diferença entre o estudo dos signos e o estudo da linguagem. Como já apresentado, a linguística ocupa-se do estudo da linguagem, mas ela faz parte de uma ciência maior, a semiótica. A semiótica, teoria geral dos signos desenvolvida por Charles Peirce serviu e continua servindo de base para vários estudos que se ocupam dos signos musicais, pois se ocupa de signos de forma mais ampla, abarcando não só a música, mas qualquer outro sistema de signo e suas semioses. Quando nos referimos a uma nota musical, por exemplo, estamos falando de uma representação. O conceito de “nota lá”, por exemplo, é a representação enquanto ideia da frequência de 440 Hertz. A nota escrita na pauta é a representação da representação. Traçando uma analogia com as línguas, quando pensamos na palavra “árvore”, por exemplo, temos o conceito do signo em si, da ideia de árvore (significado, a representação mental), enquanto a manifestação fônica ou escrita da palavra é a imagem acústica dessa ideia, enquanto elemento tangível e perceptível (significante).
Já os elementos musicais adquirem significado por meio da forma em que são usados. Não há um significado inerente dos elementos, mas é possível que sejam usados para comunicar e expressar sentimentos, contudo o significado associado é construído de forma totalmente pragmática.
Podemos entender que tanto a música quanto as línguas naturais são sistemas que podem ter raízes biológicas cuja matéria prima em comum (som) foi organizada para que pessoas pudessem expressar emoções. Assim como as línguas apresentam elementos que podem ser reorganizados até se transformarem numa manifestação musical, através dos elementos prosódicos presentes na fala, por exemplo. A música, além de seus próprios signos sonoros, pode conter elementos da língua e pode conter a própria língua (canções, por exemplo), mas ela é, em si, um sistema independente da linguagem, mas que pode interagir com ela. E fazer uso dela. Porém, cada uma mantem sua singularidade enquanto sistema. A música, enquanto conceito singular. Assim como a linguagem.
Como já havia comentado no início deste artigo, meu objetivo foi contribuir para o debate através da apresentação dos conceitos dos termos em questão a partir das ciências que os estudam. É importante ressaltar que conceitos são recortes necessários para que possamos organizar a realidade que nos cerca e pensar sobre ela, bem como definir e classificar objetos em sua profundidade, sem necessariamente implicar em um “engessamento” dos conceitos. Afinal, a realidade é mutável o tempo todo e precisamos estar atentos para possíveis necessidades de adaptações desses conceitos que as descrevem.
Juliana Damião Gomes Christmann é mestre em Letras pela USP, Bacharel em Composição e Regência pela UNESP, graduanda em Ciências Biológicas pela UNICID e Letras — Português pela UNITAU. Tem Especialização em Linguística e é aluna especial do curso de Pós-Graduação em Linguística da FFLCH-USP, na disciplina de Semiótica das Interações e pós-graduanda em Arqueologia pela Faculdade Claretiano.
REFERÊNCIAS
CLIFTON, Thomas. Music as Heard. New Heaven: Yale University Press, 1983.
FIORIN, José Luiz (org). Introdução à Linguística. Vol. 1: Objetos Teóricos. 6 ed. São Paulo: Contexto, 2019.
FIORIN, José Luiz (org). Linguística? O que é isso?. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2019.
LAKOFF, G., JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: The University of Chicago Press, 1980 (tradução brasileira com o título Metáforas da Vida Cotidiana, São Paulo: EDUC/Mercado de Letras, 2002).
ROSA, Maria Carlota. Introdução à biolinguística: linguagem e mente. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2018.