Música e imitação [não é o que você está pensando];

A Beleza do Som
A Beleza do Som
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3 min readSep 5, 2021

Alessandro Carvalho
Doutorando em Letras pela UFES

“Larguemos o individualismo de lado e imitemos. Não por uma enaltação patética de si próprio, mas por uma perpetuação de uma arte que eleve o espírito humano.”

O romantismo, com sua exaltação do individualismo e vinculação à burguesia, corrompeu nossa visão sobre a imitação. Uma espécie de engenho e suposta originalidade, subordinando todo o passado ao seu próprio momento numa escala temporal teleológica e positivista, permitindo a afirmação de que há uma superioridade do presente em relação ao passado. É nesse contexto que a palavra “imitar” passa a adquirir um sentido pejorativo, pois a menção a uma autoridade artística ou intelectual dentro de um texto parece necessitar ser explicitada, algo que um dia não foi dessa forma.

A palavra imitar deriva do substantivo grego mimesis (μίμησις), que significa literalmente imitação ou representação. Em latim, a palavra é imitatio e, daí, surge o nosso “imitar”, que muitas vezes é visto com maus olhos, especialmente no que diz respeito ao meio artístico. Se dissermos, por exemplo, que um músico imitou/copiou outro, estamos atribuindo a ele um pecado, digno de julgamento. No entanto, ao analisarmos como esse termo era utilizado pelos antigos, talvez consigamos ver um aspecto positivo da imitação.

Recorro a Aristóteles. O filósofo estagirita, em sua Poética, promove uma elaboração a respeito das formas artísticas de sua época, ou seja, do século V AEC. Segundo ele “A epopeia e a tragédia […] e ainda a maior parte da música de flauta e de cítara são todas, vistas em conjunto, imitações”. A música, portanto, que não deixa de ser uma espécie de poesia, estabelece-se pela imitação de algo. Assim, criamos arte ao imitar algo, seja por meio de cores, de ritmo, da voz, do corpo ou de qualquer aspecto possível para nós, humanos.

Quando somos crianças, aprendemos a falar e a andar ao imitar os adultos e as outras crianças. Aprendemos a escrever também imitando. Para aprender um instrumento musical, portanto, também imitamos alguém; sejam professores, colegas, artistas já consagrados ou não, estamos sempre imitando, ainda que tentemos adaptar ao nosso próprio modo de performar.

Não estou defendendo plágio. Há uma enorme diferença entre olhar para outra pessoa como uma referência e tomar para si uma produção dela. Contudo, creio que nossa tóxica visão sobre o “imitar” e nossa obrigação de desenvolvermos algo original e único, ofusca a prática e confunde o desenvolvimento de um artista. Na verdade, é possível até mesmo usar algo que não é seu em uma obra sua, imitando para criar. Exemplifico a genial Sonata N. 2 de Eugène Ysaÿe, que toma emprestado para si o Prelúdio da Partita em Mi Maior de Bach, enriquecendo a si mesmo e ao próprio Bach por exaltar sua música e ressignificá-la. A imitação aqui estabelece um efeito magnífico, que só pode ser realizado por meio de um olhar atento para o outro.

Larguemos o individualismo de lado e imitemos. Não por uma enaltação patética de si próprio, mas por uma perpetuação de uma arte que eleve o espírito humano. Temos muito a aprender com o outro, como já o fizemos ao nos deleitar com a fala e o movimento alheio enquanto imitávamos.

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