Música e Linguagem: o mistério da despalavra

Talita Rodrigues

A Beleza do Som
A Beleza do Som
6 min readMay 15, 2022

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Foto de Eugenio Mazzone (@eugi1492)

Música e Linguagem: o mistério da despalavra
O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio e que sabe a árvore
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.
(PESSOA, 2018).

Já consciente do paradigma tão bem explicado no poema de Alberto Caeiro, será possível encontrar resposta ao título desse texto? Só é possível conhecer o caminho, caminhando, e nesse caso, estamos falando das articulações humanas frente ao real, ou seja, é movimento, é ser, é verdade. E se pensarmos verdade no sentido grego, encontramos alétheia (αλήθεια), que articula o pensamento do real como dinâmica velante-desvelante do ser; diferente do conceito romano, que pensa verdade como um final, um efeito que procede à causa, que finaliza e de-fine o real (HEIDEGGER, 2012). Esse movimento estabelece relações de poder entre as dinâmicas e potências do real, atribuindo uma força à esfera da outra enquanto buscamos por esse santo graal da resposta verdadeira e única do significado das coisas.

Tu, místico, vês significação em todas as coisas
Para ti tudo tem um sentido velado.
Há uma coisa oculta em cada coisa que vês
O que vês, vê-lo sempre para veres outra coisa.
Para mim, graças a ter olhos só para ver,
Eu vejo ausência de significação em todas as coisas;
Vejo-o e amo-me, porque ser uma coisa é não significar nada.
Ser uma coisa é não ser susceptível de interpretação
(PESSOA, 2018).

Considerando a pergunta inicial da maneira que está posta, estabelecemos uma relação sujeito-predicado onde o predicado é disposto em prejuízo ao sujeito. Esse movimento reduz a vigência concreta do ser-música e ser-linguagem em representação, o que permite operacionar pela lógica da razão, pela técnica; pré posicionando música e linguagem numa relação de pré-juízo onde a substantividade concreta é sujeitada a condição de objeto (JARDIM, 2018).

Música e linguagem se relacionam na esfera ontológica, na relação de velar-desvelar do ser-música e do ser-linguagem. A abordagem epistemológica, que reduz o saber do poeta ao saber prático, transfere a unidade ontológica à generalização ôntica, permitindo assim a operacionalização do real vigente em representação aparente.

É o que acontece entre “sentido” e “significado”. Enquanto significado habita a relação ôntica do que se mostra, sentido é a re-união do ente que se mostra e do ser que se resguarda. Significado responde à operação técnico-linguística. Sentido é condição de possibilidade de pensamento. Pensar e sentir são o mesmo, mas não são a mesma coisa. Pensar responde ao sentido, à essência do real, ou seja, à singularidade da unidade do ser (JARDIM, 2018). Ser, o “mais insólito de todos os verbos. Ser, o próprio insólito, onde em verdade, próprio, insólito, musicalidade, ser: a unidade, a linguagem, a liberdade, o mesmo” (CASTRO, 2011, p.102).

Por essa entrada, desvelamos a face da linguagem no viver e no pensar-questão do nosso ser-no-mundo (HEIDEGGER, 2003), essa é nossa essência humana: realizar referência ao ser. Nesse sentido, música e linguagem são e não são o mesmo, ou seja, no vigor da linguagem como casa do ser onde habita o homem (JARDIM, 1995), configura-se a unidade ser e pensar da mesma maneira que a musicalidade da música consuma a referência ao ser, guiando a procura do que já somos: “A musicalidade é a casa do ser. Nela habita o ser humano. Os pensadores e compositores (poetas) lhe servem de vigias, pois nas obras acontece a vigília desvelante, a verdade do ser. Poiesis” (CASTRO, 2011, p. 118). A potência da música é desde a fresta que se abre no convite à poesia; aquele que se deixar ouvir, tocar, criar e co-criar, experimenta a re-união do ser-pensar em suas vísceras sangrentas e, como numa transfusão desesperada, corre, recorre e escorre o desespero da existência por esse instante-ser regido pela musicalidade. Aqui (s)urge a eficiência poética: aquele que vela a vigília des-velante e que, desde o ser no abismo do caos e nada, oferece ao outro o direito de sonhar na morada do homem como quem já esteve lá, no abismo e na des-palavra.

Agora só espero a despalavra: a palavra nascida para o canto — desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa.
Quero o som que ainda não deu liga.
Quero o som gotejante das violas de cocho.
A palavra que tenha um aroma ainda cego.
Até antes do murmúrio.
Que fosse nem um risco de voz.
Que só mostrasse a cintilância dos escuros.
A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem.
O antesmente verbal: a despalavra mesmo.

(Barros, 2010, p. 368).

Assim, música e linguagem são modos possibilitadores de articulação do real pela concretude e substantividade em que vigem. Nesse sentido, a realidade é a possibilidade de realização do real enquanto musicalidade é a possibilidade de música no sentido originário, como possibilidade de acesso, habitação entre o fundo e a fundação, entre terra e mundo. Constituem espaço-temporalidade no movimento de enraização do homem (pro)fundo e do ser-no-mundo.

Eu bem sabia que a nossa visão é um ato poético do olhar.
Assim aquele dia eu vi a tarde desaberta nas margens do rio.
Depois eu quisera também que as minhas palavras fizessem parte do chão como os lagartos fazem.
Eu queria que minhas palavras de joelhos no chão pudessem ouvir as origens da terra. (Barros, 2010, p. 461).

REFERÊNCIAS

BARROS, Manoel de. Poesia completa / Manoel de Barros. São Paulo: Leya, 2010.

CASTRO, Manuel Antônio de. Musicalidade: o penhor de aprender a ensinar. In: TERCEIRA MARGEM: Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, Pós-Graduação, Ano XV, n. 25, jul-dez. 2011. p.11.

HEIDEGGER, M. A Caminho da Linguagem. Tradução por Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2003.

_______________. Ensaios e Conferências. Tradução por Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012.

JARDIM, Antonio. Música e Filosofia. Curso de Mestrado em Música. 13 mar. 2018. Notas de Aula. Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

___________. Pássaros Não Fazem Música: Formigas Não fazem Política. Pesquisa e Música: Revista do Centro de Pós-graduação, Pesquisa e Especialização do Conservatório Brasileiro de Música, Rio de Janeiro, vol. 1, no. 2, p. 75–80, Dez. 1995.

PESSOA, Fernando. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Disponível em:<https://bibliotecadigital.agrcanelas.edu.pt/download/7/Poemas-de-Alberto-Caeiro%20-%20Fernando%20Pessoa.pdf>. Acesso em 16 de abril de 2018.

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