Neoliberalismo Musicalesco

A Beleza do Som
A Beleza do Som
Published in
3 min readAug 24, 2021

Ivanildo Jesus

“O nosso estado mínimo, que não quer mais ter nada a ver com esse negócio de formação musical, empurra nossos aspirantes ao profissionalismo para o precipício da mendicância virtual.”

Desde a derrocada do governo Dilma em 2016 nós, brasileiros, passamos do flerte ao status de relacionamento sério com o liberalismo. A metáfora matrimonial — usada frequentemente pelo presidente Bolsonaro para explicar suas relações homoafetivas com políticos e ministros — está sempre em voga esses dias e parece ser a melhor maneira de ilustrar nossa macropolítica atualmente. Passamos por reformas indecentes desde o governo Temer: Reforma trabalhista — que deu todo o quiproquó com a deputa Tabata Amaral — reformas na educação, tributária e a reforma política que se desenrola no horizonte. O estado mínimo e a mão invisível do mercado têm de fato trabalhado, enquanto nós, aparentemente, dormimos.

Muitos de nós defende essas reformas, vemos no Estado sempre um ponto de ineficiência, reclamamos que falta o mínimo: educação, segurança e saúde. Faz sentido que o Estado se enxugue e passe a cuidar do que de fato deveria. E agora, querido leitor, desde que assumimos o nosso relacionamento com o liberalismo, vamos fazer uma pequena “DR”. O Estado mínimo está entregando, desde 2016, o prometido?

Se você respondeu que sim, seu relacionamento está salvo. Com certeza a sua carteira de investimentos deve estar te sorrindo. Você é desses que levanta às 5 da manhã, para melhorar o seu “mindset”, afinal macropolítica e economia são só mais um desafio, um degrau, na escada do sucesso. Com suporte do crossfit e de coachs, sua vida vai bem, e obrigado.

Às pobres almas que corrigirão a minha visão sobre ciências políticas e economia podem aquietar-se, deixarei esses temas complexos aos cuidados dos interessados. Vou falar de música, onde a minha ignorância é ainda mais vasta.

Tenho visto nesses dias o aumento no número de pedidos de financiamento coletivos para estudantes de música continuarem sua formação em outro país. O nosso estado mínimo, que não quer mais ter nada a ver com esse negócio de formação musical, empurra nossos aspirantes ao profissionalismo para o precipício da mendicância virtual. A onda é tão avassaladora que até aqueles que supostamente não precisariam se colocar na fila da miséria alheia, resolvem se bater entre os miseráveis por uma migalha de pão. Aos necessitados qualquer pix serve.

Foto: Marcos Gallardo

Sei que ao digerir os últimos parágrafos alguns estarão salivando, possessos com as minhas colocações, e para estes, rebato com Dom Helder Câmara: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo; quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista.” O desejo de estudar e se aprimorar sempre será virtuoso. O músico tem sede e fome de informação, e de formação. Agora temo que atrelar todo o futuro cultural de uma nação às benesses da mão invisível; à misericórdia alheia, é um retrocesso do estado de bem-estar social, que em tese deveria cuidar do seu bem mais precioso: a educação e o futuro de sua nação.

O “neoliberalismo musicalesco” é uma das vertentes políticas, no ramo da música, do famigerado social-liberalismo. Não ir até a estrutura dos problemas e oferecer — e às vezes vender — pano a quem deseja enxugar gelo, é um dos seus motes. Na música tem produzido a deterioração do financiamento à festivais que não louvam o nome do divino judaico-cristão e deixado uma legião de órfãos do Estado perambulando os becos virtuais em busca do mínimo auxílio.

Esse ano está próximo do fim, e nosso relacionamento com o neoliberalismo pode enfim acabar. Como términos são difíceis, vá pensando em quem você quer na sua vida (política) para o futuro. Alguém que te deixa às traças, em busca do afago da mão invisível, ou alguém que arque com o mínimo e te permita o pleno desenvolvimento das suas habilidades.

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