Nos falta poesia
Ivanildo Jesus
Desde que comecei a aventura por essas letras dominicais distanciei-me da poesia. Se vocês me acompanham por aqui verão que os meus escritos ora tratam das sonoridades do meu cotidiano, ora da subjetividade política que nos perpassa. Acredito que a miséria destes dias atenuou nossa sede por política, de maneira que — não querendo boiar na superfície de um debate já gasto e exaustivo — optei por ler mais sobre teoria política.
Confesso que a empreitada não foi e não está sendo nada fácil. Invejo a prolixidade de Engels e a profundidade estrutural de Marx, contudo, os escritos são áridos. Não é leitura para noite e sim para o raiar do dia, no silêncio de escritórios e quartos solitários, com elucubrações deveras, sínteses e muita pesquisa. Isso quanto à teoria, já a prática certamente carece do contato com a comunidade.
Isso posto, ganhei de aniversário da querida editora desse portal, minha dileta Kas Hoshi, “Literatura, pão e poesia” de Sérgio Vaz. Naufragando pelas redes já encontrara, como garrafas jogadas no oceano, textos do poeta. Tive, assim como na música, um contato com a arte poética elitizada. Amo a Tabacaria de Álvaro de Campos. Pessoa fulgura ao lado de Machado, para mim, como um dos embaixadores da língua portuguesa. Para quem não conhece a Tabacaria recomendo a versão de Abujamra no Youtube. Lembro do verso “E hoje não há mendigo que não inveja só por não ser eu” e a releitura com o que de há de espantoso no cotidiano é simultânea.
Naufrago por essas letras em uma aventura que se assemelha quase a um diário porque nem sempre minhas palavras podem se dar o luxo do planejamento. Em textos como “A periodicidade do periódico” deixo entrever os motivos pelos quais vocês me verão com alguma frequência por aqui. E por lá, como aqui, lhes digo: no final das contas é sempre por uma questão de capitalismo. Quando o aturdido da rotina toma de assalto os colunistas, eu escrevo e eles podem se permitir um respiro.
Lembro do Contardo Calligaris (colunista da Folha, psicanalista e dramaturgo), falecido no ano passado. Na ocasião de sua morte circulavam trechos de suas falas pela rede, e, em um desses trechos, o psicanalista falava sobre sua coluna semanal na Folha de São Paulo, de como isso influenciara sua vida. Toda semana Contardo perscrutava a existência com atenção para retirar dela algum fragmento que nos maravilhasse. Uma peça, uma música ou situação que permitissem ao leitor certa perspectiva diferente da existência.
Acredito que seja esse o motivo pelo qual escrevemos. Acredito que ao escrever, revisitamos as sensações na memória e, mesmo técnicos, deixamos entrever onde estão os nossos afetos. Vaz diz que “Você é aquilo que faz quando ninguém vê” e por isso escrever é sempre desnudar-se. É, mesmo sendo técnicos e críticos, dar uma pausa no frenesi da rotina para fazer-se ouvido através das letras.
Nós músicos não lidamos o dia todo com música como experiência estética de sublimação, ao contrário, o nosso lidar artístico diário está muito mais ligado a um processo Kafkiano do que ao poético de Vaz. Vivemos às voltas com prazos, peças que não se tocarão sozinhas, aulas para dar e fazer, ensaios e traslados desumanos. Parte da profissão musical hoje é organizacional. É gerir página, agenda, podcast, gravação, enviar, receber e ler e-mails. Enfim, é, ao que parece, estar às voltas com o tecnicismo do qual tentamos sem muito êxito fugir. Um frenesi de trabalho sem fim do qual não sabemos muito a utilidade.
Quando então nos impressionamos? Quando então o artista se nutre com a arte? Quando as grades de nossas agendas nos permitirão o acesso mínimo à liberdade e os nossos corpos já fatigados com a rotina terão, após algum descanso, reacesa a sede pela arte? Nos falta a liberdade da poesia. Nos falta a sensibilidade de vislumbrar por trás das experiências, que não sejam só musicais, a liberdade de existir sem o instrumento, talvez a arte de escrever e experimentar a silenciosa, mas sonora experiência das letras com mais frequência.