O fenômeno do músico que não ouve música

Adyr Francisco

A Beleza do Som
A Beleza do Som
5 min readJan 14, 2024

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Somos músicos, mas não ouvimos música. Sim, é isso mesmo que você leu. Ou vai me dizer que você ou alguém que você conheça e que também seja do meio escute algo que saia do espectro Bach, Beethoven, Mozart, Brahms e Tchaikovsky (guardadas, obviamente, todas as referências e reverências)? Já ouviu falar em Jan Dismas Zelenka, Alexander von Zemlinsky, Alfred Schnittke, Jean Cras, Ethel Smyth, Florence Price, Mélanie (Mel) Bonis, Marguerite Canal, Modesta Bor, Leopoldo Miguez? Estas e estes compositores são alguns poucos exemplos e estão longe de serem dos mais “obscuros” na música ocidental. Mas, ainda assim, são pouco escutados (com a exceção de algumas poucas obras de alguns deles) e menos ainda programados/interpretados. Qual seria a razão por trás deste fenômeno? Um tanto curioso, não?! Olha que nem me referi à música oriental.

Estamos em 2024, com toda sorte de avanços tecnológicos imagináveis e inimagináveis na palma de nossas mãos, literalmente. Com um só clique, temos acesso a uma infinidade de informações disponibilizadas num piscar de olhos. Tanta coisa me vem à cabeça que não sei nem por onde começar.

A música de concerto ocidental tem alguns nomes que são verdadeiros pilares que foram e continuam sendo essenciais em nossa formação, não só como instrumentistas/cantoras e cantores, mas também como apreciadores de música, como seres humanos de uma maneira geral. Vide os já mencionados no início deste escrito, que estão presentes em todo e qualquer concurso orquestral, por exemplo, no caso de nós instrumentistas de cordas. Porém, justamente aproveitando esta deixa dos concursos, será que conhecemos mesmo estes compositores?

Se tornou um tanto comum para mim ouvir e ver o espanto não só de alunos mas também de colegas quando menciono alguma obra em específico. Parece que falo num outro idioma, tamanha falta de conhecimento (escrevo isto tomando o maior cuidado para não soar arrogante, o que seria terrível!). Ouso dizer que é falta de curiosidade mesmo. Afinal de contas, “conhecer” os três últimos concertos para violino de Mozart e meia dúzia de excertos de suas sinfonias parece ser algo de grandioso para algumas pessoas.

Vamos ao Brasil, então: Heitor Villa-Lobos! Considerado por muitos, nosso maior compositor. O que “todo mundo” conhece? “O Trenzinho do Caipira”, último movimento da maravilhosa “Bachianas Brasileiras Nº2”; o prelúdio da “Bachianas Brasileiras Nº4”; a “Melodia Sentimental”, da magnífica “Floresta do Amazonas” e, nesses últimos anos, seu quarteto de cordas Nº1. Uma pena, dado o tamanho de sua obra, composta de mais de mil opus. São 17 (!) quartetos de cordas, 11 sinfonias (12, se a partitura de sua 5ª, denominada “A Paz”, fosse encontrada), 5 concertos para Piano, 2 concertos para Cello, sem contar as obras concertantes para o mesmo instrumento, e mesmo um Concerto para Violino! “Fantasia de Movimentos Mistos” é o nome da complexa obra para violino e orquestra, com seus três movimentos escritos em períodos distintos de sua vida. Existem ótimas gravações da obra no YouTube, como a de Oscar Borgerth com a Orquestra Sinfônica Brasileira, e a de Sung Hee Shin, em sua redução para Violino e Piano, por exemplo. Ainda falando em Violino, o mesmo ainda compôs “O Martírio dos Insetos”, também para Violino e Orquestra, além de três sonatas para o instrumento acompanhado do piano. Completando a lista de algumas das obras do compositor, adiciona-se 9 Bachianas Brasileiras, 12 Choros (segundo alguns musicólogos, 14, com as partituras dos choros de número 13 e 14 desaparecidas) mais a “Introdução aos Choros”, para Violão e Orquestra e os dois Choros Bis, para Violino e Violoncelo. Caros leitores, há de se notar que, para um compositor com tamanha quantidade de obras, o conhecimento e o interesse pelas mesmas segue, infelizmente, muito reduzido.

Wolfram Christ, por anos Violista Principal da Filarmônica de Berlim, em uma entrevista após uma masterclass com um aluno que interpretava a obra “Märchenbilder”, de Robert Schumann para a plataforma DakApp, se queixava que os estudantes, mesmo com todo o acesso à informação, ainda assim, não se atentavam às anotações que o compositor nos deixa nas partes, se contentando em reproduzir apenas o que ouvem, sem nem mesmo procurar saber o significado daquelas palavras. Ora, se não somos capazes de ler e/ou traduzir o que está escrito, quem dirá ouvir o que os compositores e compositoras têm a dizer.

Imagem de Daniel Fontenele

Um dos sintomas dessa falta de curiosidade passa também por nós, intérpretes. Ou, vai me dizer que programar e tocar o Octeto de Felix Mendelssohn todo ano, há quase 10 anos, é algo diferente, novo? Só um exemplo entre tantos outros, como por exemplo o de orquestras que programam as mesmas sinfonias religiosamente toda temporada, também há mais de 10 anos; orquestras brasileiras que não tocam música brasileira; orquestras francesas que não tocam música francesa; diretores artísticos que não enxergam potencial em seu próprio país, que programam as mesmas obras de sempre, e por aí vai. Me diga: como alguém, com todo este ecossistema de repetição, vai se abrir pro mar de música que existe por aí?

Pessoas, se permitam ouvir, descobrir e se encantar pelo novo, que, às vezes, nem é tão novo assim. Citei uma porção de compositoras e compositoras no início deste escrito.

Se emocionem com a Sonata para Flauta e Piano de Mélanie (Mel) Bonis; o Quinteto para Harpa, de Jean Cras; com a lindíssima Sonata para Violino e Piano, com “Prometeu” e “Ave Libertas”, de Leopoldo Miguez; com o Quinteto para Piano e a Sinfonia “Gaélica”, de Amy Beach; com os movimentos lentos de TODOS os quartetos para cordas, as sinfonias (tenho uma predileção pelas 4 primeiras) de Villa-Lobos. Se divirtam com a obra de Nikolai Kapustin, um gênio da mistura do jazz com a música de concerto; com a linda sonata para Violino e Piano, de Marguerite Canal; com a emocionante Sinfonia Nº1, de Alexander Scriabin; com a Sinfonia Nº3 “Ilya Muromets”, de Reinhold Glière; com a “Sinfonia Drammatica”, o “Quarteto Dorico” e o “Concerto Gregoriano”, de Ottorino Respighi; com a Sinfonia Nº1, de Rued Langgaard. Enfim, poderia passar horas escrevendo muitas outras recomendações. Sejam amigas e amigos do algoritmo do YouTube e vocês se surpreenderão

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