O palco é só a ponta do iceberg

Juliana Damião Christmann

A Beleza do Som
A Beleza do Som
5 min readApr 9, 2023

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Hoje, gostaria de propor uma reflexão acerca do invisível. Da arte que acontece nos bastidores. A arte que faz o espetáculo acontecer, mas nem sempre colhe os frutos do reconhecimento. Os integrantes desse mundo invisível são, geralmente, categorizados como “equipe técnica”, diferenciando-os da equipe artística (dramática, musical ou ambas). São cenotécnicos, contrarregras, roteiristas, divulgadores, maquiadores, visagistas, camareiros, operadores de som e luz, produtores executivos e gráficos, entre muitos outros. Ora, se o espetáculo não se consuma sem o trabalho desses profissionais, por que o status de artista é dado somente ao profissional do palco? Por que, muitas vezes (e aqui, como quem já esteve muitas vezes na equipe técnica, no palco ou na regência, vou pedir a licença de fazer uso de minhas próprias experiências anedóticas), os profissionais que atuam no palco sequer sabem o nome de seus colegas que lhe servem de alicerce, que constroem todo um arcabouço que possibilitará o sucesso de sua expressão artística construída através de tanto trabalho técnico. Trabalho técnico? Curioso: o artista do palco também realiza previamente um trabalho técnico. Ele tem seu próprio bastidor individual. Então, o profissional do palco pode reivindicar para si a técnica, mas o profissional do bastidor pode reivindicar a arte? Apenas por fazer parte dela? Não pretendo dar a resposta, mas propor um debate acerca da constante desvalorização desses profissionais que, muitas vezes, não são notados justamente por sua competência. O que quero dizer com isso? Pergunto aos cantores e atores, por exemplo, que me leem, de quantos nomes de técnicos de luz ou som eles podem se recordar, de espetáculos que aconteceram sem intercorrências. No entanto, quando houve alguma, é bastante provável que o autor do erro tenha sido notado. Dessa forma, observemos que o profissional do palco é lembrado quando erra e é lembrado quando acerta. O profissional dos bastidores, na maior parte das vezes, permanecerá invisível quando acerta e lembrado apenas por decorrência de seu erro.

Imagem de Sam Moghadam Khamseh retirada do Unsplash

Gostaria, então, de discorrer um pouco sobre a metáfora escolhida para o título do presente texto: só a ponta do iceberg. Talvez, o advérbio empregado não seja a melhor expressão desta tão usada figura de linguagem. É importante ressaltar que um iceberg é sua base, mas também é sua ponta. A ponta visível é sustentada por uma grande base que se inicia também em uma porção menor, se alarga em superfície, e se afina na parte observável. Também desta forma, um espetáculo se inicia em um contexto menor, que é um projeto, expande-se quando começa a tomar forma através das funções são delegadas, e culmina da parte que será mostrada ao público. Assim como um iceberg só é um iceberg na junção de todas as suas porções, um espetáculo é um espetáculo em todas as suas instâncias: idealização, preparação e realização.

É artista, então, todo aquele que leva ao resultado final um espetáculo? Ressalto que meu propósito não é responder a essa pergunta, já que não me enxergo no direito de reivindicar uma verdade dessa grandeza. Quero deixar mais perguntas do que respostas. No entanto, considero extremamente importante discutir o conceito de artista, e por conseguinte, da arte em si.

Ao adentrarmos em pesquisas etimológicas da palavra “arte”, encontraremos sua raiz no termo ars, que é a palavra que traduziu o termo grego téchnē (τέχνη) para o mundo latino. Por ars, definia-se uma maneira de realizar um conjunto de ações. É uma habilidade adquirida em oposição às faculdades naturais. Já no mundo grego, a atividade artística não era, inicialmente, algo exclusivamente destinado à habilidade de criação estética, mas sim, relacionada ao vínculo “mestre-discípulo”, na qual, um conhecedor mais experiente de uma habilidade manual transmitia seus ensinamentos a um novato a fim de conferir a ele a destreza necessária. Resumindo: a téchnē estaria relacionada à transmissão do saber humano. É sabido que tais termos passaram por mudanças semânticas no decorrer dos séculos. Tais mudanças fazem parte do mundo das palavras (caso contrário, a etimologia não teria sentido em existir). Com o passar do tempo, o conceito de téchnē direcionou seu foco nas habilidades que se ocupavam de transmitir a beleza. As primeiras referências às musas, por exemplo, são encontradas na Teogonia de Hesíodo, como símbolo das habilidades criadoras dos músicos. Nos séculos seguintes, usou-se o termo “arte” para definir atividades mais concretas, como pintura, escultura, literatura e escultura. A arte, conceito em constante mudança, chegou aos nossos tempos ganhando novas formas de expressão (no cinema, na fotografia, quadrinhos, videogames), sendo que, muitas vezes, foi através dos avanços da tecnologia (outro conceito que tem a téchnē como origem) que sua existência fez-se possível. Sim, os conceitos mudaram, subdividiram-se, misturaram-se. Platão, com sua definição de mímesis (μίμησις), trouxe a nós o conceito de arte como representação. O romantismo trouxe o conceito de arte como expressão, e as vertentes do final do século XIX e início do século XX introduziram o conceito de arte como forma. Como podemos concluir, é difícil determinar uma definição de arte, já que o conceito varia de acordo com as mudanças históricas. O teatro grego, por exemplo, tinha função educativa em seu tempo. Ao ser materializado nos dias atuais, terá sua função redirecionada para fins contemplativos.

Como tantas mudanças no conceito de arte, o conceito de artista também precisará ser realocado e contextualizado, mas é essencial entender suas origens para que entendamos que arte, a técnica e até mesmo a tecnologia irão bifurcar num mesmo lugar: a materialização da expressão artística. E, para isso, o artista fará uso de todos esses recursos em seu processo de criação.

Juliana Christmann é Mestre em Língua Alemã pela USP, tem Especialização em Linguística, é Bacharel em Composição e Regência pela USP e Licencianda em Ciências Biológicas pela UNICID.

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