O texto que não vinha

Ivanildo Jesus

A Beleza do Som
A Beleza do Som
3 min readFeb 26, 2023

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Ando pelo apartamento desnorteado. Assisto um pouco de TV, leio um tanto e nada. Não adianta, o texto não chega. É como se as palavras tivessem se escondido de mim. Minha pseudo-prolixidade ri diante do meu desespero. No calendário vejo 25 de fevereiro, um sábado, a overture do domingo sussurra no meu ouvido: amanhã é domingo, cadê o texto?

Foto de Jan Kahánek, retirada do Unsplash

Penso em fazer poesia, talvez algo breve. E a brevidade jamais dará conta do meu frenesi. Tenho problemas com a síntese. Deus me livre se, para viver, precisar ser sintético. Não o serei, eu sou em enxurrada. Lembro das chuvas que nos assolam, do racismo ambiental e das tragédias anunciadas. Ao falar para músicos, quero perguntar-lhes: e as nossas tragédias anunciadas? Sobre elas, o que faremos? Dos nossos fechamentos, dos austericídios… o que faremos? Desisto, minha pulsão revolucionária esmorece. Quero ainda o descanso que só a festa carnavalesca me proporciona, quero rigorosamente a alegria.

Contudo, cedo. Volto ao texto, às letras que fogem e ensaio temas. Penso em falar de Adélia Prado, só para tirar sarro do Zema no abismo de sua ignorância. Abro a caixinha pedindo sugestões, uma delas propõe: fala dos assédios. Suspiro. Falar de assédio, dói. Lembro de Young, das cincos fases da opressão e que todo assédio provém da liberdade que a estrutura de poder fornece ao assediador. A ressaca do carnaval me desencoraja a pesquisa necessária para falar com profundidade analítica sobre as nossas desventuras.

Enquanto ensaiava temas, pensei — confesso — em falar de BBB. Preocupo-me: o que pensará o belezer? Será que o belezer é do tipo que lê e por isso não assiste BBB? Mas, me vejo às voltas com as problemáticas do programa. Pego-me pensando: “será que Guskey praticariam racismo religioso se tivessem feito canto coral na infância? Será que, se quando fossem pequenos, tivessem cantado Caymmi, Milton e Gil fariam ainda racismo religioso? É impossível ouvir/cantar Caymmi e não respeitar quem vê entidade na grandeza do mar.

“É doce morrer no mar, nas ondas verdes do mar.” — canta Caymmi na minha cabeça. Que diabos essa chuvarada, penso. O texto não vem. Digo, o texto que deveria vir, aquele que é cômico e também formativo. Esse texto não vem. “Se talvez tivesse levado o notebook na viagem do carnaval já teria escrito.” — diz o Burnout sem pudor no meu ouvido. Irrito-me. O texto não vem. Conjecturo: por que nós, músicos “eruditos”, temos tanta dificuldade em escrever? Por que temos esse bloqueio enorme com a escrita. Por que para falar de nós, das nossas situações, da materialidade da nossa vida, nos fogem as palavras? Cadê a beleza do nosso som acessível também pela escrita?

Tento, mas o texto não vem. Distribuo palavras e pensamentos na folha branca, como Villa-Lobos cujas obras são cartas à posteridade, sem esperar resposta. Releio-me e percebo que talvez outro texto tenha vindo. Um texto-outro. Agradeço e me despeço dele e do belezer, com um ponto final.

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