Péssimo Juízo
Ivanildo Jesus
Dor de dente. Mais precisamente o último siso rasgando a gengiva, nascendo tão torto quanto um dente poderia nascer. “Uma dor constante ou espaçada” perguntou o dentista, e tudo que eu queria responder era “uma dor doutor, uma dor”. Antes de declarar derrota e procurar ajuda médica, enfrentei sem muito êxito a provação da existência: continuar na minha desumana jornada de trabalho, com dor de dente.
Na primeira aula da terça-feira, tenho uma classe só de meninas, uma delas, a mais agitada — é como se tivesse dez dentro de si -, me pergunta sobre tudo e mais um pouco. Vive em constante briga com a espaleira — um artefato que auxilia no posicionamento do violino, dizem os técnicos, contrariando minha aluna espoleta.
Explico sobre o semestre para essa classe de meninas, falo que teremos várias apresentações em lugares importantes, “nós tocaremos na câmara, na faculdade e no teatro” e para cada local, essa aluna que dentro de si tem dez faz da minha explicação uma espécie de canto responsorial, “no teatro, mas como assim no teatro?”, “na câmara, para o B….?”, “na faculdade, qual faculdade?” e eu sigo, tentando em vão responder algumas das perguntas dela que gerarão mais uma dezena de perguntas e finalizar a explicação que comecei.
Isso foi na terça, na quarta nada da dor passar. Não era nada avassalador, sabe um pequeno incômodo, aquele dentinho vindo na hora mais inesperada e absurda possível, só para atrapalhar? Na primeira aula da quarta, em outro projeto, noutra cidade não tão distante quanto a da terça, tenho outra classe ainda mais agitada. Eles se conhecem da escola, chegam socializando e vão embora socializando. Só quem deu aula para o sexto ano sabe do que digo. Aquilo é selva. Não há atenção que dure mais que cinco minutos. Antes de começar a aula afino os violinos. Sigo com o ouvido atento, tentando deixar as cordas em quintas justas, enquanto isso eles seguem se provocando, contando da vida fora do projeto, falando mal dos professores da escola e por aí vai.
Certa feita, nessa turma da quarta, vendo que um dos alunos chegava quase a roçar o nariz na partitura para tentar enxergar, perguntei se já tinha ido ao oftalmologista. Pergunta de praxe. Professor tem faro para essas coisas, a gente sabe quando há dificuldade de leitura e quando há necessidade de óculos. Julguei que era o segundo caso. Quando perguntei sobre a visita ao oftalmo, meu aluno respondeu “meu avô disse que não vai me levar porque meu pai já estragou com a minha vida”, acredito que o pai tenha algum envolvimento com o tráfico e a tutela do menino seja do avô. Faço uma nota mental para depois acionar a assistência social do projeto pedindo auxílio com a questão do oftalmo e do avô.
Na quinta volto à cidade mais distante, para a primeira turma de meninas. Sinto que talvez o siso esteja ganhando a guerra contra mim e a minha gengiva. Começo a aula com menos ânimo, já com feição de poucos amigos. Minha aluna que tem dez dentro de si continua inflexível. No final da aula, antes de deixá-las ir embora, quero organizar as partituras de cada uma. Colocar nome e clipe. Logo depois da aula delas, no que seria a minha “janela”, dou outra aula, só que dessa vez online. Já atrasado, pego o telefone e mando mensagem a minha próxima aluna dizendo que atrasaria. Esqueço o telefone aberto e continuo organizando as partituras. Essa, a que tem dez dentro de si, do meu lado, assistindo minha vã tentativa de organização, diz: “pode ir com calma, ela disse que está tudo bem, que te espera”. Bloqueio o telefone e sorrio. Não tinha muito o que fazer.
Na sexta, volto para esse outro projeto social mais perto, onde o aluno deixara escapar sobre a alienação parental do avô. Quero escrever para eles uma Rouanet, a fim de oferecer aos mais velhos uma bolsa auxílio para que não precisem deixar a música de lado e ceder a pressão do famigerado “jovem aprendiz”. Processo custoso. Dizem os colegas que aprovar é fácil, já a captação de recurso, difícil.
Dou uma pausa da Rouanet, checo o telefone. Em um dos diversos grupos de trabalho, uma das coordenadoras avisava a equipe de uma situação atípica. Na tela um print de uma mensagem da assessora de um vereador local, dizendo que o mesmo fará uso de seu tempo na tribuna para repudiar o uso da linguagem neutra utilizada pelo projeto. Releio com atenção. Penso nas inúmeras formas que o vereador poderia utilizar seu tempo para ajudar o projeto. Raciocino mais um pouco e entendo a perversidade do cálculo político. É ano de eleição. Tudo que pode ser usado para cooptar adeptos e animar a massa, será utilizado sem pudor.
Consternado com o que acabei de ler, respiro fundo. Vou ao banheiro. No espelho abro a boca e tento ver meu siso. No fundo da boca, quase inexpressivo, o nanico, um dentinho é a fonte do meu sofrimento. Fecho a boca, levo a mão a face e respiro fundo outra vez. Penso nas crianças, nos projetos, nos muitos trabalhos e me refaço. “Não é um dentinho que me fará desistir.” Penso na retirada do siso. Continuo o meu dia. “Com ou sem dor de dente, há muito por fazer.”