Pacto narcísico civilizatório nos processos de ensino-aprendizagem

A Beleza do Som
A Beleza do Som
Published in
4 min readNov 21, 2021

Ivanildo Jesus

O processo civilizatório — leia-se colonizatório — brasileiro é marcado pelo genocídio indígena e do povo negro. Os vitimados tiveram que se adequar aos padrões de uma Europa que se considerava referência e salvação à barbárie dos gentios. E isso é história. Ao nos debruçarmos sobre os estudos decoloniais sobre os epistemicídios nas Américas queremos repensar a nossa maneira de lidar com um passado traumático que invade cotidianamente nossa cultura. Nossos logradouros dividem-se em viscondes, barões, padres e nomes indígenas, e tudo isso para nós é de uma normalidade que beira o insensível. Acostumados a viver desde o nascer com a ideia da miscigenação e do caldeirão cultural, esquecemos que esses grupos raramente viveram em harmonia. O que os jesuítas fizeram com os indígenas foi um processo civilizador, e por civilização somos levados erroneamente a crer que ensinamos aos gentios nossa (no caso europeia) ética, religiosa e justa maneira de ser.

Pateo do Colégio/Reprodução

Usamos os estudos decoloniais em música para repensar nossa práxis pedagógica. Uma práxis que não queira se colocar como processo colonizador do aluno. Antes que os estudos coloniais chegassem ao âmago das discussões na educação musical o tecnicismo dos instrumentistas vagava por aí sem ter a mínima ideia do que se fazia com o aluno. Repensar a práxis pedagógica era conversa de comunista, e não valia a pena gastar o precioso tempo do educando, ou do professor durante o planejamento pedagógico, para pensar em práticas que fossem além das coloniais. Quando vemos um aluno com potencial saltando aos olhos; alunos cuja procura pela afinação é simplesmente natural; onde não são necessários exaustivos exercícios rítmicos e tudo parece decorrer com demasiada facilidade, somos instados quase que inconscientemente a fazer deste um instrumentista. Chamamos de talentoso, ou dotado, àquele portador de faculdade musicais inatas. Para esse perfil o “talento” passa a ser uma espécie de condenação, queremos torná-lo músico; queremos fazer deste a todo custo instrumentista, e quando as nossas projeções não vão de encontro as desse educando, dizemos que tanto talento é um “desperdício”. Esse é o nosso ímpeto professoral: ajudar na condução do indivíduo para o pleno desenvolver de suas faculdades. Volto aos Jesuítas. Diferentes dos Bandeirantes o trato dos jesuítas para com os gentios era menos violento. Por menos violento, com alguma distância histórica dos acontecimentos, leio que havia entre índios e jesuítas um processo de ensino-aprendizagem. Um processo que mesmo catequizador era marcado em alguma instância por algum afeto.

Ao introduzir a discussão por essa via parece que quero taxar os professores de vilões, como se eles estivessem matando a nossa maneira de ser. Digo-lhe que não é isso. Cito os jesuítas por mera questão histórica, eles se colocam como um ponto no nosso vasto processo educacional que com certeza antecede a chegada dos portugueses. Repensar a práxis pedagógica para o professor é lidar com certa culpa. Nós erramos, e nem sempre corrigimos em tempo. Tudo em educação leva um tempo glacial para acontecer e quando damos conta de alguns desacertos incorrigíveis resta a culpa. No caso da educação instrumental, que nem sempre é musical, fascinar o aluno na primeira aula é fácil, fazê-lo se encantar com as possibilidades do instrumento é simples e durante o processo, mesmo aos perfis mais hábeis, o desânimo. Manter o encantamento da primeira aula até a última é o maior desafio.

Temo que tudo isso seja armadilha. Uma armadilha psicológica. O professor bancário, que deposita o conhecimento, dá lugar ao professor narcísico, que deseja fazer do aluno uma cópia de si. E isso não acontece só na educação instrumental-musical. Na educação em geral estamos às voltas com o que chamo de pacto narcísico civilizatório nos processos de ensino-aprendizagem. O que interessa não é fazer o sujeito chegar as plenas possibilidades do que ele é, mas sim que ele chegue as plenas possibilidades daquilo que sou. Queremos ver nesse ser em formação um reflexo daquilo que somos, porque isso é de fato o “perfil”, “aptidão” e “talento” esperados. Se há mais seres como nós, que pensam de maneira análoga a nossa, e, portanto, conseguem entender sem tantos ruídos nossa linguagem, temos a base disso que chamamos de civilização. O outro não é mais um bárbaro, é um civilizado, alguém com quem podemos dialogar. Compartilhar desse arcabouço cultural ajuda no nosso sentimento de pertencimento, voltamos à tribo, ou à civilização, por conta disso refuto que isso seja armadilha. Nas nossas simbologias culturais dentro dos processos de aprendizagem somos tomados por pactos narcísicos e na vontade inconsciente de fazer do outro uma espécie de eu.

Lógico que com outros nomes e pensadores, mais capazes do que esse que vos fala, a educação tenta lidar com isso. Em construir um processo que minimize erros e oriente a conduta do educador para que vá além da busca desesperada da construção narcísica. Por isso estudar os grandes teóricos da educação é importante. Sem estudá-los incorremos nessa problemática que de simples não tem nada. Mesmo ao professor mais experiente, sagaz e Freireano, não construir um outro eu e ver além do ímpeto civilizador é uma grande dificuldade.

--

--