Pais e responsáveis

Ivanildo Jesus

A Beleza do Som
A Beleza do Som
4 min readAug 13, 2023

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Conviver com assistentes sociais me rende aprendizados diversos, mais do que, confesso, com alguns dos meus colegas músicos. Elas, na maioria das vezes, ao menos na minha experiência, são dotadas de um olhar atento às mazelas que nos aflige, não deixando passar desapercebido o que às vezes tomamos por habitual. Dessa convivência sempre educativa, trago-lhes pequenas lições que ficaram incrustadas na minha memória.

“Os filhos dos outros são os nossos filhos.”

Nestes tempos de famílias nucleares, perdemos as dimensões afetivas e faculdades sociais trabalhadas nas famílias estendidas, se antes as famílias contavam com numerosos irmãos e avós convivendo, nem sempre em união, mas juntos, hoje as famílias nucleares são a regra. Nosso convívio com as famílias estendidas ficou subjugado aos encontros dominicais e ocasiões festivas, ou, quando muito, aos encontros em atividades religiosas. Em geral, convivemos mesmo e aprendemos a ser e estar no mundo contemporâneo a partir desta experiência da família nuclear.

Com esse desdobramento nossa experiência mudou. Pergunte aos discentes quantos deles comem na mesa, em família e quantos deles fazem as refeições separados, cada um no seu canto, quando não na frente da televisão, ou na companhia do celular. Aposto que a maioria das respostas será a refeição solitária. Temos junto dessa mudança outra impactante: ambos os pais hoje estão fora de casa, trabalhando. Não somos mais um modelo de sociedade em que a figura de um pai provedor ganha um salário para sustentar uma família inteira. Se de um lado há, por conseguinte, notáveis avanços na luta feminista, há também o achatamento dos salários e o aumento do custo de vida. Todos e todas, hoje, precisamos trabalhar se quisermos pensar em ter/ser uma família. Com quem ficam então as crianças?

A escola passa a ser o ponto principal de convivência dos infantes, lá eles aprendem que ser em família é diferente de ser em sociedade. Na escola as relações sociais moldam-se a partir de outros paradigmas, diferentes dos familiares. A dimensão do afeto e cuidado, na maioria das vezes mais ligado à figura da mãe, dilui-se na presença de professoras que mesmo quando são extremamente afetuosas, mudarão no próximo ano. Há exigências diversas, de rendimento estudantil e, sobretudo, de sociabilidade. Na escola é preciso achar a sua tribo, é preciso experimentar a companhia de colegas que nem sempre são boas companhias, é preciso aprender a discernir o que é uma boa companhia da má companhia. Na escola, é onde aprendemos a ser através do outro, anulando-o ou reafirmando-o.

Dessa conjuntura, nasce uma série de análises, falando da responsabilidade escolar no que tange ao educar, impor limites, ensinar respeito, coletividade e civilidade. Hoje a escola percebe-se não podendo só ensinar a ler, escrever, somar e subtrair, ela sente cada vez mais a necessidade premente de, junto à família nuclear, ensinar a ser.

Deixo de lado a experiência educacional regular, para falar da experiência educacional, talvez, “irregular”. A aprendizagem das artes, também do esporte, já distancia-se da educação formal através de um pressuposto de vontade: para aprender é preciso querer. Quem é responsável e já tentou insistir na aprendizagem de uma criança em um instrumento que não é da sua vontade sabe o oceano em maremotos que está se metendo. De vez em quando é isso, a criança não quer. O que fazemos então? Aceitamos e procuramos outra coisa que lhe desperte o interesse. Passado o ponto do querer, tão necessário desde a primeira aula, temos a ambição: não é só necessário querer fazer, entretanto é necessário também querer evoluir, ser melhor do que ontem.

Começamos então outro trabalho constante, dedicação e mais dedicação, sem fim. Nesse ínterim de progresso, no que tange a arte, é necessário falar dos afetos, é necessário dizer que para tocar outra alma, tem que se permitir tocar e sentir. Assistir, resguardar e garantir essa aprendizagem, é uma dádiva sem fim. Vejo famílias que, depois da primeira apresentação, ao ver o filho enfrentar o medo do palco, dá o maior dos abraços possível, quase aos prantos, assisto também, e com preocupação, ao familiar que antes do professor, no mesmo caso, quer ser o crítico mais severo da performance do próprio filho, tecendo devolutivas não pedidas e pouco lisonjeiras.

Hoje, às voltas com as reflexões do dia dos pais, penso que, às vezes, nos tornamos as famílias estendia dos discentes. Os laços nublam-se e vemos ausências e excessos, decorrentes dos mais diferentes tipos de criação, sempre, logicamente, defrontando-se com as nossas próprias.

Os filhos dos outros são nossos filhos na medida que, assim como os progenitores, somos responsáveis por educar, pelo bem educar, por garantir direitos e acessos, por lutar para que esse ser em formação tenha plenas condições de desenvolvimento.

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