“Parabéns Pra Você” — Uma leitura

A Beleza do Som
A Beleza do Som
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4 min readSep 26, 2021

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Talita Rodrigues
Mestre em Musica Pela UFRJ

“Parabéns pra você”, uma canção mais “velha que andar pra frente”. Seria possível contar quantas vezes por ano ouvimos a melodia para-bem? Entre nosso aniversário, os aniversários dos queridos, as comemorações aleatórias em bares e restaurantes — ainda mais se você for atendente de uma rede de restaurantes que faz uma intervenção para o aniversariante -, é uma canção que retorna todo ano como a própria palavra já diz anniversarius, anno conversus: “aquilo que volta todo ano”.

Uma breve história

A melodia, apesar de extremamente popular, ao que tudo indica foi criada em 1875 por Mildred Jane Gill — compositora e professora de música — e Patricia Smith Hill — enfermeira e professora de educação infantil. As irmãs criaram essa melodia originalmente como “Good Morning to All” (“Bom dia a Todos”), mas a música foi registrada posteriormente com a famosa letra “Happy Birthday To You”. Depois de brigas na justiça, as irmãs conseguiram os direitos. Até recentemente os royalties estavam sob poder da Warner/Cappell Music que, após perder um processo em 2016, foi obrigada a devolver 14 milhões de dólares às pessoas e empresas que adquiriram a licença.

Já no Brasil, a canção ganhou sua letra em 1942 através de um concurso promovido pela Rádio Tupi. Bertha Celeste Homem de Mello (1902–1999) de Pindamonhangaba-SP venceu o concurso com a letra que cantamos felizes em cada aniversário (LESME, 2018):

Parabéns a você Nesta data querida Muita felicidade Muitos anos de vida

Pela superfície, além da superfície

Em Dó, Sol, Lá ou Mi, a canção surge na urgência do “Bom dia”; sua melodia simples, repetitiva e cadenciada tonalmente de forma tão óbvia reafirma isso. Porém, antes de nos atermos a esses detalhes, lembremo-nos do movimento originário da música e da palavra: “A coisa nela mesma é a coisa no e desde o seu próprio afeto” (FOGEL, 2007), este é um convite para o pensamento, para o ver originário, para o sentido, que foi sentido. Como nos diz o poeta:

O que vemos das coisas são as coisas
Por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra? Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
O essencial é saber ver
Saber ver sem estar a pensar

[XXIV., p.45]

“Ver sem estar a pensar” como sem estar a raciocinar, significar, associar, destrinchar, conceituar o que já está posto. Ver e ouvir são ver e ouvir. E é nesse espírito que a música se a-presenta e onde faço meu convite para o ver/ouvir originário.

Sob essa perspectiva e sob a condução do poeta-músico-intérprete os tempos2 da música nos convidam uma dobra de pensamento, um desvio do tempo-espaço linear que geralmente nos atrai os olhos e nos coloca “a pensar”. O que está detrás da melodia, está detrás da melodia, se é que há algo por detrás da melodia.

Vale mais a pena ver uma coisa sempre pela primeira vez que conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.

[Criança Desconhecida, p.90]

Na interpretação, nós músicos, temos muita responsabilidade ao estender esse convite porque nossa motivação tem o poder de conduzir para cá ou para lá o vigor dessa dobra. Para além das instruções interpretativas (que nos oferecem ferramentas valiosas da técnica), o movimento/gesto musical é um acontecimento poético e real tal qual o orvalho que escorre das folhas pela manhã e se não estivermos atentos à natureza desse movimento, puxamos a folha “antes da hora” e, apesar do resultado ser o mesmo, a mágica se vai; escorre entre os dedos independentemente da perfeição com que se puxe a folha.

É nesse sentido que o estudo da interpretação e da performance devem estar atentos, sobretudo em instrumentos onde a técnica tende a ser formalista inclusive na canalização do orvalho da folha. E falo assim porque somente as metáforas reais podem se aproximar da natureza do fenômeno arte/música.

Entre as potências da música “Parabéns pra você”, estão claras as repetições rítmicas, as cadências, a pouca variação de notas entre outros detalhamentos musicais que criamos para nos apropriarmos do movimento/gesto musical. Porém, também estão presentes o convite à celebração (bom dia ou parabéns), ao canto e ao acompanhamento (palmas), convite à alegria e outros afetos e sentidos que talvez por serem tão vigorosos, arrebatadores, reais e mais poderosos que nossas tendências formalísticas, são ignorados em nossas tentativas de aproximação por análise.

Assim como tantas outras músicas, conhecidas ou não, essa dimensão sempre estará presente. É condição humana, é movimento em nossa constituição de tempo-espaço da vida na Terra e não podemos tomá-la por pouco, subjetiva ou por “filosofia dos loucos”. Considerá-la é trazer profundidade à nossa arte, é fazer valer nosso movimento de vida. Além do mais essa dimensão, bem como a canção “Parabéns pra você”, é mais velha que andar pra frente.

1 Em 1896, a canção Good Morning to All foi publicada pela editora Clayton F. Summy Co, na coleção Song Stories for the Kindergarten (algo como Canções com estórias para o Jardim de Infância).

2 Me refiro aqui ao que formalísticamente pode ser chamado de frase ou período.

REFERÊNCIAS

LESME, Adriano. “História do Parabéns”; Brasil Escola. Disponível em

<https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/historia-parabens.htm>. Acesso em 16 de abril de 2018.

FOGEL, Gilvan. O desaprendizado do símbolo: a poética do ver imediato. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 171: 39/51, out.-dez., 2007.

PESSOA, Fernando. Poemas Completos de Alberto Caeiro. Disponível em

<https://www.luso-livros.net/livros/poesia/> Acesso em 16 de abril de 2018.

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