Procurando bem todo mundo tem pereba

Gustavo Santana

A Beleza do Som
A Beleza do Som
4 min readApr 3, 2022

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Foto de http://sintomatizando.blogspot.com/2015/10/a-bailarina-que-nao-tem.html

Se por um lado, enquanto instrumentistas visamos a palavra “performance” como o produto final de nosso árduo processo de construção artística, na vida real aglutinamos a ideia da criação de uma persona que nos parece mais confortável, progressista, superior e, sem identificar no horizonte indícios de que se vestir de uma “quase-identidade” é frágil, abraçamos com intensidade a possibilidade da criação de uma existência politicamente correta, pedagogicamente progressista e artisticamente consciente.

É fato que, pedagogicamente, tanto no ensino comum quanto no ensino musical, temos trilhado um caminho que, mesmo a passos lentos, busca trazer cada vez mais um discurso progressista para dentro da sala de aula, onde docente e discente tenham cada vez mais uma relação de equilíbrio e onde discentes sejam constantemente estimulados no que diz respeito à criatividade, consciência dos processos de sua própria aprendizagem e não se tornem meros componentes passivos dentro do ambiente escolar. Todo esse processo é admirável e não terá durante esse texto a minha crítica, deixarei minhas ressalvas quanto a isso para um futuro texto. Como aluno sou resultado de uma escola que abraçava a linhagem construtivista e como docente, me vejo certo de que é importante rever os espaços de hierarquia dentro do ambiente de ensino-aprendizagem e que proporcionar autonomia ao discente pode ser muito proveitoso.

A vivência de um artista que entende o papel social cuja arte imprescindivelmente deve ter, passa pelo eterno processo de afirmar suas convicções sociais e entender todas as renúncias que isso vai proporcionar e até mesmo as possíveis hipocrisias em que viver num mundo onde o capital em sua maioria se concentra nas mãos daqueles que anseiam apenas pela manutenção de seus privilégios pode proporcionar. Ainda assim, é importante que o artista entenda que o peso da sua pele, corpo, gênero e sexualidade no mundo não é descolado do processo artístico. O artista que somos encarna e reside no corpo que temos, no corpo que somos. E é a partir dessa linha de raciocínio que reside a reflexão que eu desejo trazer nesse texto: Por que nos vestimos de ideologias perfeitas que não são coerentes com as nossas ações?

Como eu disse, acredito sim na importância de uma pedagogia libertadora e de uma vivência artística consciente e posicionada. Mas nada disso faz sentido se for apenas um discurso vazio, usado simplesmente como ferramenta de autopromoção. Se você, leitor, acompanhou minha última publicação nessa plataforma, vai perceber que esse texto estabelece um contraponto ao que foi dito anteriormente. Lá eu questionava o processo artístico desconectado da realidade e aqui questiono o processo artístico que se faz parecer progressista e conectado à realidade. Faço esse contraponto não como alguém que não reconhece as próprias incoerências, afinal, como Adriana Calcanhoto conhecidamente cantou: “Confessando bem, todo mundo faz pecado, logo assim que a missa termina…”, faço, na realidade, como alguém que tem se deparado com lindos discursos, propostas e afirmações, mas percebido que quem muito fala, teme o silêncio exatamente porque nele tudo se revela.

Sinto que aprendemos os discursos que devemos dizer, o que fica agradável na manchete do cotidiano, mas lá no rodapé, nas pequenas letras, as cláusulas de nossas inverdades se consolidam. O que é uma pedagogia construtivista com uma prática destruidora? O que é um artista que performa o próprio prazer com o fazer musical além de um fracasso premunido?

A recorrente ideia de que somos um produto diante das vitrines capitalistas nos fez entender que é possível aplicar filtros em tudo aquilo que acreditamos que poderia nos tornar um produto mais atrativo, uma versão imaculada de nossa existência. Seria realmente muito mais simples se apenas o desejo, o discurso, o filtro, fizesse com que nos tornássemos uma versão mais próxima do que gostaríamos de ser, mas sinto que o caminho real é muito mais longo e árduo. É claro que a busca por um mundo mais amplo e honesto e por uma realidade artística mais progressista é válida, mas nos caminhos tortos da execução de nossas utopias, deparamo-nos com a ilusão de um caminho mais rápido, acreditamos ser a bailarina sem marca de vacina ou piolho, mas nos desequilibramos em meio a tantas piruetas e em algum momento cairemos na inevitável verdade de que procurando bem, todo mundo tem… muito ainda a aprender.

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