Professor também erra

A Beleza do Som
A Beleza do Som
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5 min readMar 26, 2023

Ivanildo Jesus

O fragmento da história que vou lhes contar agora aconteceu há muito, de maneira que, com minha memória pós-covid, já não logro lembrar-me com exatidão dos fatos citados. Portanto, peço de antemão que perdoem-me a imprecisão e o romantismo que perpassa o início da crônica.

Certa feita, viajando com a ilustre professora Maria Vischnia, uma das lendas vivas do violino nesse país, ouvia-a contar sobre suas aulas no Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão. Maria, dona de um discurso sarcástico e irascível, era daquelas com quem poucos ousavam se meter. Das aulas, ela falava da assertividade das correções e de tudo que propunha aos alunos, com certo grau de severidade. Abre parênteses: Lembro de um dia, tomando café da tarde na sua casa, cuja vista dava a uma deslumbrante represa, disse-lhe: “que lindo aqui quando chove, professora”, ao que ela respondeu: “quando não chove também”. Fecha parênteses.

Voltando ao episódio citado, contava ela que depois de um dia inteiro de aulas no Festival, os professores se apresentavam à noite. Pronto, vi-a então estremecer. Estava ali a maior dificuldade: se apresentar para os alunos depois de ter passado um dia inteiro corrigindo-os. Como ter êxito em todas as falhas que há pouco apontara nos outros?

Se isso assustava Maria Vischnia, imagina o que não é capaz de fazer na mente de meros mortais. A relação professor-aluno é dinâmica, potente e transformadora. O professor de instrumento não é mero entretener, mas sim o depositário de uma responsabilidade gigantesca, ímpar. No livro “Vida de músico não é fácil”, do ilustre Bohumil Med, fala ele da relação que se cria entre professor e aluno, que transcende a barreira didática para inaugurar um laço de afeto que, em falta de um nome melhor, chamo de amizade.

Como ter aula por anos — tempo necessário para formação instrumental — com alguém que não te inspira? Como semanalmente estar na frente do espelho da crítica, acompanhado por alguém com quem você não tem o mínimo de apreço, ou que não tem o mínimo apreço por você? É, de fato, uma dificuldade. Como disse o célebre Suzuki “Educação é amor”. Precisamos falar mais do que podem os afetos na educação.

Se de um lado há esse abismo de responsabilidade, de outro lado, e aqui não faltará exemplos, qual o poder de um bom professor? O quão transformador é um encontro semanal com alguém que te renova as possibilidades? Com alguém que mesmo quando você não acredita em si e não vê a mínima melhora, o menor indício de evolução, após te ouvir, diz: “Isso está melhor, bravo”. Ou o contrário, alguém que vendo o abismo infindável do seu esforço, diz somente: “pode melhorar”.

Um bom professor revigora. Mostra coisas que você não viu. Aponta caminhos. Está sempre imbuído de auxiliar, implementar e revisar as estratégias para melhora. Digo mais, essa atitude transformadora vem de uma espécie de salto de fé Kierkegaardiano que vê em você aquilo que ainda não existe e acredita indubitavelmente no seu potencial.

Na pedagogia denominamos intencionalidade pedagógica as intenções por trás de cada ação do professor, não é simplesmente construir um planejamento pedagógico repleto de conteúdos, contudo, é, em cada ação, ter a intenção de atingir um objetivo abrangente e integral, rumo à emancipação do educando. Na música como e quando isso acontece?

Quais as intenções pedagógicas atrás de cada mínima escolha? Do repertório à disposição da sala, pensando nas aulas em grupo, nada está posto. Não interessa a metodologia, de Suzuki à Orff, de Paynter a Swanwick, há sempre desafios à espreita: o que farei deles? O que farei com eles? Já que Freire diz que não somos, mas estamos sendo, o que seremos enquanto formos?

Vygotsky, pensador russo, nos traz o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP). Área entre o que o aluno já sabe (real), os problemas que consegue resolver sozinho e aqueles que ele pode resolver depois de alguma ajuda (potencial). Nessa área dá-se a maravilha da aprendizagem. Achar o ZDP não é tarefa fácil. É cálculo e reflexão constante. Como os alunos (sujeitos) estão em constante desenvolvimento, sua realidade, e, portanto, sua potencialidade, está sempre mudando.

Desse emaranhado de conceitos mínimos da ciência educacional, tenta o educador dar conta da tarefa de ensinar. Ele calcula, planeja, estabelece, cria cenários, reflete e implementa. Dá início às atividades, na esperança de que a suposta potencialidade do educando seja atingida a partir de sua leitura do que considera o real de cada sujeito. Fácil, não?

Além de tudo, desse cálculo educacional sempre presente, estão as condições materiais que perpassam a figura do educador. A defasagem salarial, marca registrada da profissão, atrelada a precarização cada vez mais constante, também deve entrar na conta. Qual ZDP calcula o professor precarizado? Qual potencialidade ele é capaz de enxergar nos alunos a sua frente, quando a sua própria realidade é sempre precária?

É um oceano de afetos, possibilidades, potencialidades e realidades em maremoto, usando Nietzsche. Nesse mar, náufrago, tenta o professor chegar ao seu destino educacional, na embarcação simples que lhe permitiu a vida. Então, de vez em quando, no meio das intempestivas possibilidades, o professor percebe que erra. Percebe-se trocando de lugar com o educando, tendo que redefinir o seu próprio ZDP, vislumbrando com sobriedade sua intencionalidade pedagógica. O professor percebe-se falho, errante e humano.

Nesse caso, pergunta-se “o que poderei de fato ensinar?”. O tremor o toma. Quando o professor percebe que, ao tentar temperar o pranto, acabou salgando a dor, sua intencionalidade pedagógica falseia. Afinal, como diz o dito popular, de boas intenções, o inferno está cheio.

Nesse ponto, é hora de dar um passo atrás e rever conceitos. É hora de encarar o espelho, mesmo que lá esteja uma espécie de retrato de Dorian Gray. Deixo aqui algumas máximas que tem me auxiliado nesse caminho:

“Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja somente outra humana” — Carl Jung.
Essa ouvi de uma terapeuta, Junguiana, logicamente. Ao falar das dificuldades na escola, ela me fez despir da figura do professor para, na frente das crianças, ser só uma alma humana querendo tocar outra alma humana.

“Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor” — Paulo Freire.
Batida mas sempre necessária. Nem sempre os nossos processos educacionais foram emancipadores, como romper então com o ciclo da opressão?

“Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz daquilo que fizeram de você” — Sartre.
Fazendo algo daquilo que fizeram com você. Sabendo-se humano, errante e falho, mas entendendo que, como diz Sérgio Vaz, “O artista é a última linha da sociedade. Quando ele desiste ou se entrega, é porque já não resta mais nada”. Na educação erramos, mas jamais teremos o luxo de nos permitir desistir.

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