Professores entusiasmados: afeto catalisador e o ensinar-fazer música
Talita Rodrigues
O afeto no ensino-aprendizagem tem sido amplamente estudado, mas, para além da utilidade pedagógica, proponho aqui entendermos a sua importância no desenvolvimento da própria psique humana e a potencialização que há no trânsito de ideias, pensamentos, produções criativas e artísticas quando possuímos um ambiente afetivo e relações favoráveis.
Como o aprendizado de um instrumento musical possui um perfil personalizado e único, saímos do modelo educacional das massas e de grandes turmas para grupos menores de prática musical e aulas individuais de instrumento, como geralmente vemos nos cursos de música em escolas especializadas e universidades. É nesse contexto que muitas vezes as relações se formam, desde amigos para a vida toda até pessoas que se desentendem; e uma admiração e carinho pelas figuras de autoridade e saber: os professores. É nessa dinâmica relacional que se movimentam os afetos das pessoas envolvidas.
Esse afeto catalisador é o pensamento calcado por Nise da Silveira (1981) em suas observações ao tratar de esquizofrênicos graves no hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro no Rio de Janeiro (RJ). Nise observou que os indivíduos em grande sofrimento psíquico, além de alcançarem alguma organização mental através dos fazeres artísticos, tinham esses movimentos potencializados quando havia uma relação afetiva com seres do ambiente: desde animais e plantas aos monitores, cuidadores e artistas que trabalhavam com os doentes. Estes atuavam como catalisadores ou inibidores de afetividade:
“Em oposição ao agente catalisador está o agente inibidor, que impede a reação […]. Entre o pessoal que tem contato com o doente: médicos, enfermeiros, monitores de terapêutica ocupacional, há também os catalisadores e os inibidores. Sem dúvida o mesmo indivíduo poderá funcionar como catalisador para uma pessoa e inibidor para outra”.(SILVEIRA, 1981, P.77)
O ambiente acolhedor e o vínculo afetivo são condições básicas para que se estabeleça a entroncada relação entre espaço cotidiano e espaço imaginário, entre mundo externo e mundo interno (Silveira, 1981). Acredito que a grande descoberta de Nise não se referia apenas aos doentes esquizofrênicos. O vínculo afetivo que existe nas relações potencializa a organização mental de qualquer pessoa, assim como os fazeres artísticos. E, sob essa perspectiva, é fácil observar como o vínculo entre mestre e aprendiz pode ser catalisador ou inibidor das potências artísticas dos estudantes.
Como já dizia Shinichi Suzuki: “Educação é amor” (2008). Sua proposta de filosofia pedagógica é toda desenvolvida na dinâmica relacional na aula. É sempre observar o positivo primeiro, cuidar da maneira que se diz e como se trata os alunos e pais e cuidar dos vínculos afetivos, pois eles são matéria para o desenvolvimento da própria vida humana. O ensino de música não deve servir apenas a formação de futuros músicos, mas sim de grandes seres humanos (SUZUKI, 2008). Se levarmos essa filosofia conosco, os conteúdos programáticos transitam com mais facilidade, maior potência e empoderamento dos aprendizes em des-velar-se através da própria arte, da própria música.
Ainda mais se forem músicos em formação ou amadores. Não esqueçamos que o amador é aquele que ama e se seu ganha pão não está na arte, está num local ainda mais precioso e íntimo, pois escolheu fazê-lo por impulso próprio, não para lhe garantir o sustento. Nós professores jamais podemos esquecer que ao ensinar nosso ofício não estamos ensinando apenas como manipular um instrumento para fazer música como a conhecemos, estamos tratando do sonho de alguém, de seu interior, de suas emoções e de como essa pessoa pode, através do seu instrumento, fazer-se arte, música e discurso. Na dinâmica da sala de aula estamos tanto estabelecendo uma relação de diálogo interno e externo para ambos, professor e aluno, quanto estamos ensinando estes alunos a fazê-lo através do nosso instrumento de escolha. Tanto em aula quanto no palco, as relações, quando em potência de presença, potencializam o trâns-ito consciente-inconsciente se observarmos pelo viés psicanalítico de Nise da Silveira (1981); e de transe artístico se observarmos pela concretude da experiência artística no real, sendo ela própria real, re-unidade de sentido (HEIDEGGER, 2012).
E, se os artistas e os loucos caminham tão próximos, como poderíamos não pensar em toda a dinâmica relacional psíquica e afetiva em aulas de música? Os professores e alunos deixam de ser artistas quando estão em aula? No encontro professor-aluno, as relações são a inauguração e o acionamento da catalização ou inibição dos afetos, consequentemente potencializa ou enfraquece os processos que se darão no ambiente de aprendizado e do fazer artístico. Logicamente, esses movimentos não são estáticos nem totalmente controláveis, a grande questão é estar disponível e flexível às dinâmicas relacionais, proporcionando o efeito catalisador entusiasmando tanto nossos alunos quanto nós mesmos. “Os conhecimentos técnicos não constituem tudo em qualquer profissão. A pessoa humana de cada um, a sensibilidade, a intuição, são qualidades preciosas” (SILVEIRA, 1981, p.75). Sejamos professores amorosos e disponíveis trazendo não só o conteúdo programático tão cuidadosamente elaborado, mas também o conteúdo catalisador do afeto, da alegria e do entusiasmo!
Enthousiasmos: inspiração ou êxtase provocado por uma divindade; ter um deus dentro de si (ENTUSIASMO, 2022).
ENTUSIASMO. In: Significados. Disponível em: <https://www.significados.com.br/entusiasmo>. Acesso em 9 de março de 2022.
HEDEGGER, M. “Ciência e Pensamento do Sentido”. In: Ensaios e Conferências. Tradução por Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012. Cap. 2, p. 39–60.
SILVEIRA, Nise. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.
SUZUKI, Shinichi. Educação é Amor: o Método Clássico da Educação do Talento. Brasil: Pallotti — Santa Maria/RS, 2008.