Quando ao vivo e juntos, Caetano e Chico fizeram história

Levi Torres

A Beleza do Som
A Beleza do Som
5 min readAug 4, 2024

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‘’Caetano e Chico juntos e ao vivo’’ é um álbum que registrou dois shows realizados por Chico Buarque e Caetano Veloso na cidade de Salvador (BA) no Teatro Castro Alves entre os dias de 10 e 11 de novembro de 1972, lançado pela Philips no final do mesmo ano.

O álbum — marcado pela união dos dois maiores artistas da época — causou estranhamento ao público devido aos rumores de rixas entre os dois, histórias que existiam desde o tempo dos festivais da música brasileira, quando ambos protagonizaram uma intensa rivalidade, culminando na apresentação de “Alegria, Alegria’’ de Caetano como uma oposição musical à “A Banda’’ de Chico.

A qualidade técnica da gravação deixa muito a desejar, o que marcou todo o período de vendas por críticas além de uma tentativa de humilhação do disco e das músicas feita por Artur da Távola, repórter brasileiro que trabalhava no jornal The New York Times que dedicou sua carreira a tentativas falhas de atacar e desmerecer a música brasileira para o público internacional. O principal problema técnico da gravação são as constantes intervenções grosseiras de aplausos e gritos da plateia que se sobrepõem completamente aos trechos das músicas, entretanto não podemos esquecer que estávamos em plena ditadura empresarial-militar, com os órgãos repressores trabalhando a todo vapor. Alguns “problemas” foram encontrados e sinalizados pela censura, como um trecho da música ‘’atrás da porta’’, parceria de Chico Buarque com Francis Hime, cujo inconveniente destacado na letra foi a palavra ‘’pelos’’ no trecho:

“E me agarrei nos teus cabelos

Nos teus pelos

Teu pijama

Nos teus pés

Ao pé da cama”

Considerada sexualizada no contexto sob o risco do material não ser liberado, a solução que Roberto Menescal — então produtor da gravadora Philips — achou, após o trecho ser barrado pela censura, foi editar e incluir posteriormente sons da plateia estridentes no trecho para encobrir palavras e partes inteiras das músicas que foram proibidas. Outro verso importante completamente alterado encontra-se na música ‘’Ana de Amsterdã’’ que, após autorização do próprio Chico, teve versos regravados em estúdio.

A ideia do show veio de Ronald Berbet de Castro, dono de uma loja de discos em Salvador, onde, inclusive, Gal Costa chegou a trabalhar. O espetáculo tinha como objetivo sepultar de vez a história da rixa entre os dois e criar uma espécie de aliança entre a Tropicália, representada por Caetano e a MPB mais tradicional, refletida por Chico Buarque e por Vinícius de Moraes.

Ainda nos ensaios, Caetano e Chico receberam a notícia que Torquato Neto, poeta tropicalista, havia se suicidado, o ocorrido abalou principalmente Caetano que alterou algumas músicas de última hora e quase incluiu a música ‘’Cajuína’’, composta em homenagem ao amigo. Mais de 4 mil pessoas lotaram os assentos e o chão do teatro nos dois dias para assistir aquele que seria um dos maiores encontros da nossa música.

Durante a ditadura era comum agentes do governo serem enviados às apresentações de artistas considerados subversivos, o show de Chico e Caetano não foi exceção, no relatório do agente presente no local, foi anexado um documento que dava ênfase ao comportamento ‘’homossexual e afeminado’’ de Caetano no palco, além de que a música ‘’Apesar de Você’’ — que havia sido proibida — ainda sim foi executada. Ao final do show houve uma invasão do palco por parte da plateia chamada pelo próprio Caetano que, ainda com o microfone em mãos, disse ‘’O teatro é do povo’’, fala destacada no relatório. A imagem do palco tomado pelo público pode ser vista na contracapa do álbum.

Os 36 minutos dos dois shows selecionados chegaram às lojas com um sucesso em vendas. O foco na seleção das músicas priorizou apresentar os dois artistas em suas novas fases, Chico, que havia acabado de lançar o álbum “Construção” e inaugurado essa que seria sua fase mais sóbria, apresentando um novo Chico, mais sério, engajado e comprometido, em total contraste com o jovem que havia feito sucesso com ‘’A Banda’’ tempos atrás. A mudança no perfil do artista não só é clara na decisão de voltar ao Brasil após o exílio na Europa mas principalmente em suas composições que mesclam a forma tradicional de se escrever música no Brasil com a genialidade de Chico em usar a métrica e a lírica com críticas ácidas e sutis a ditadura que assolava o país.

Em contrapartida, Caetano, também recém chegado do exílio, vinha do álbum “Transa” que misturava o espírito tropicalista de seus últimos trabalhos com a onda do psicodelismo brasileiro e o manejo genial da língua portuguesa por Caetano que usava a poética quase erudita junto com a nova forma experimental e desafiadora de se fazer música.

O produto maior da junção desses dois artistas que, na minha avaliação, encontravam-se em seus auges musicais e poéticos foram as 11 músicas selecionadas para o LP que tem maior sucesso encontra-se na sétima faixa, uma união das músicas ‘’Você Não Entende Nada’’ e ‘’Cotidiano’’ de Caetano e Chico respectivamente. As duas canções falam sobre o aprisionamento na rotina cotidiana e do distanciamento tanto das pessoas em nossa volta quanto de nós mesmos, contudo de maneiras diferentes: ‘’Você Não Entende Nada’’ de Caetano usa da irregularidade na construção da música para causar desconforto e descompasso permeado na letra e na melodia e, também, na instabilidade e frustração do eu lírico. Já ‘’Cotidiano’’, dessa vez de Chico, aproveita a métrica repetitiva e previsível para refletir a rotina do personagem de forma desesperançosa e desistente, tratando cada momento do dia, mesmo que bom, como uma fatalidade condenada a acontecer. A faixa mescla as duas músicas e suas formas antagônicas criam uma síntese da genialidade dos dois combinadas. A partir do momento em que as canções começam a se encontrar há um revezamento na forma que se misturam, hora os versos de Caetano abandonam a irregularidade e se encaixam na métrica imposta pela estrutura de “Cotidiano”, e em outro momento a letra de Chico parece lentamente parar de resistir e caminha verso após verso deixando a métrica repetitiva que é característica da música, dando espaço para uma versão que se tornou tão memorável das duas composições que atualmente é um desafio para os dois artistas cantá-las sem que uma esbarre na outra.

As críticas, desde as coerentes até às despropositadas, e os comentários feitos ao álbum não suplantam de maneira alguma sua importância. Em tempos tempestuosos, supostos antagônicos — visto que eles mais adicionam-se e mesclam-se do que se opõem — unem-se para transmitir a necessária mensagem “o teatro é — e sempre o será — do povo”. Caetano e Chico fizeram, e ainda fazem, história. Sua hipotética promiscuidade é simplesmente música, arte e amor. Ouvi-los em “Juntos e Ao Vivo” é prova incontestável da capacidade de resistência e potência do nosso povo.

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