Questão de oftalmo

Ivanildo Jesus

A Beleza do Som
A Beleza do Som
5 min readJun 4, 2023

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Ela chega alguns minutos antes para a aula, alegre como sempre. Vejo-a na sala de espera, serelepe. A cidade onde fazemos aula é fria e eu, que por lá estou constantemente em busca do sol que insiste em fugir, sempre pergunto: “Por que tão otimista?”. Ela, pouco agasalhada, habituada ao frio, responde: “Eu vim correndo, tio, desci o morro, a gente fica com calor quando desce e sobe o morro”. Rimos do nosso hábito de microafeto e começamos a aula.

Ela pega o seu violino habitual, agora já sabe colocar a espaleira, posiciona a estante e as partituras, observo, enquanto a vejo praticar o hábito tão importante da independência. Do entrar ao sair da aula, tudo é aprendizagem. Abrir o estojo do violino, de maneira que ele não caia no chão, pegar o arco — pelo talão, jamais pela crina — apertá-lo e segurar o violino de forma correta — pelo braço, não no corpo. Ela faz tudo isso diligentemente, se aproxima e me pede para afinar o instrumento. Violino afinado, ela se senta, estamos prontos para tocar.

“Tio, quando eu vou aprender a afinar o violino?”. “Logo mais”, respondo e emendo: “afinar é um pouco complicado, as cordas podem estourar e a gente pode se machucar, mas ano que vem eu te ensino.” Toda vez que respondo falando do próximo ano ou semestre, ela franze o cenho e deixa os lábios embicados no canto da boca.

Começamos a aula pelos exercícios de arco, primeiro abrir-e-fechar-a-porta, deixamos o arco na vertical, olhamos para a ponta e fazemos o movimento de abrir e fechar o antebraço, deixando o cotovelo perto do corpo, sem que o arco possa ficar inclinado. Ela faz o movimento rápido, correndo, eu sobressalto os olhos e arqueio as sobrancelhas, ela entende o recado sem que eu precise repetir o que já fora dito nas aulas anteriores. “Tá bom tio, eu vou fazer devagar” me diz e recomeça o movimento, prestando dessa vez a atenção esperada, focada, olha para a ponta do arco e executa o movimento com perfeição, digo então o esperado: “Bravo”.

Fazemos além do abrir-e-fechar-a-porta o para-brisa, abrir-e-fechar-a-janela, foguete, gangorra, aranha e o temido água-viva. “Isso é impossível, tio.” As crianças (e os adultos) dizem isso sempre depois que peço o movimento da água-viva que consiste em um exercício de motricidade fina, imitando os tentáculos de uma água-viva, abrindo e fechando os dedos, sem mexer o pulso, antebraço e braço, enquanto eles seguram o arco. Isso ajuda a desenvolver a sensibilidade do toque e a precisão da empunhadura do arco.

“Viu, já está menos impossível” digo para ela depois que vejo o movimento da água-viva evoluir. Enfim, nossa hora de atacar a música chega, posiciono as partituras, peço as lições habituais e ouço “tio, toca a Frozen?”. Entendo que os pedidos acontecem no intuito de postergar a leitura da divertida lição das semínimas e suas pausas, mas cedo, toco a Frozen e peço: “Vamos tocar juntos? Você me acompanha e toca a corda sol, nesse ritmo, como se dissesse pão e eu toco a melodia da Frozen.” Ela aceita, mas logo depois de alguns compassos me acompanhando o bico volta ao rosto, decide parar de tocar e abaixa o violino. “Tio, eu quero tocar igual você.” Ela não quer me acompanhar na Frozen, ela quer tocar a Frozen, fazer a melodia, conciliar mão esquerda e direita, tocar temas de filme de ouvido, sem partitura.

“Eu sei, obrigado, mas vamos fazer a lição e na próxima aula trago a partitura da Frozen.” A próxima aula é um na volta a gente compra, ela sabe e eu sei, porém aceitamos por enquanto, esse é o nosso contrato tácito. “Tio e se a gente só fizesse exercício de arco nessa aula?” Penso comigo que há mais por trás dessa hesitação ao tocar, em outras aulas me assustei quando, após algum tempo lendo as lições, ela parou do nada, como se estivesse cansada, deixando a vista distante e os olhos fundos, demasiadamente abertos.

“Tio, essa semana tem quadrilha na escola, eu vou dançar, tô feliz, mas minha mãe não vai conseguir ir me ver, ela trabalha cedo até à noite e a minha dança será às 19h.” Ouço com cuidado, entendo que, além de hesitar, há o desejo da conversa, de inteirar-me do mundo dela, de me fazer parte da sua vida e de ser ouvida, e também que, às vezes, há mais a dizer do que o violino consegue falar. “Poxa Y.., que pena, mas outra pessoa além da mamãe vai te ver?” — pergunto interessado. “Vai sim, tio, minha prima vai filmar.” Sorrio e digo: “Ótimo, me mande, vou adorar ver.”

Quando a gente dá aula há algum tempo os olhos vão ficando treinados, percebemos que criança é criança e, como diz Palavra Cantada: “não trabalha, mas dá trabalho”. Há os que vêm todo arrumados para a aula, unhas limpas e bem cortadas e o cabelo penteado. Outros vêm como podem, com a roupinha que tem, parecendo carecer de algum cuidado, contudo sei que esse é o cuidado possível para algumas famílias.

“Tio, hoje a gente vai ler o livro no final da aula?”

“Sim, mas só depois que você tocar as lições, ainda não conseguimos tocar quase nada do método.”

“Ah, tio, eu não gosto do método”.

Conversamos um pouco mais, tento fazê-la tocar outras coisas e nada, raciocino comigo e penso em trocar toda a metodologia. No meio da conversa, enquanto ela falava da escola, algo me atina, pergunto: “Y.. quando foi a última vez que você foi no oftalmo?”. Ela abaixa a cabeça, o bico volta à face e me responde: “Então tio, na escola eu sento na frente, tenho dificuldade de ver a lousa, já me disseram para ir, mas minha mãe trabalha e não consegue me levar. Tem vez que os meus olhos embaçam, quando fico olhando muito tempo para a lousa.” Ouço com cuidado, pondero e peço licença para ela. Vou à coordenadora e digo: “Descobri! Não é falta de concentração, nem nada do tipo, é só uma questão de um de oftalmo.”

Imagem de David Travis, retirada do Unsplash

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