Reflexões sobre Shostakovich e o regime soviético

Alessandro Carvalho

A Beleza do Som
A Beleza do Som
6 min readNov 7, 2021

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Steve Harvey

AVISO A QUEM LÊ ESTE TEXTO: O tema é complexo e eu apenas o tangencio de forma superficial. Não quero formar uma opinião fechada, mas quero fazer um convite para que você leia mais sobre esse assunto que, ao meu ver, é interessantíssimo.

Ao olharmos para a música sob um ponto de vista histórico, vemos como ela — assim como diversas outras artes — embora fosse produzida das mais distintas formas, estava diretamente associada a uma cultura de mecenato. Ou seja, grande parte da produção musical que chegou até nós só pôde ser confeccionada em virtude da existência de alguém que amparasse o compositor. Por isso, muitas vezes, as produções artísticas eram vinculadas a um projeto político específico. Esses fatos tornam sempre complexa e, talvez, até impertinente a tentativa de determinar o quão livre alguns artistas eram por conta da cultura de submissão a uma espécie de patrono. Digo impertinente porque jamais acessaremos a mente de um compositor para saber o quão livre ele se sentia para fazer o que quisesse. Contudo, esses debates existem e, por meio deles, vemos a tentativa de enfatizar ou problematizar a situação política de um espaço em que artistas conviviam. Isso significa que, embora saibamos que seja impossível acessar a mente de um autor para sabermos o quão livre ele se sentia, podemos observar, por detrás das tentativas de alcançar essas respostas, um desejo de nós, contemporâneos, pensarmos no lugar da arte nos momentos investigados.

O interesse em determinar a liberdade de um artista de um período que não é o nosso, muitas vezes, esconde nosso próprio desejo de atribuir a um determinado regime político aspectos viciosos e mostra o quanto nós mesmos estamos submetidos a uma determinada lógica. Por exemplo, quando tratamos da arte soviética e desejamos argumentar se ela era ou não cerceada por uma espécie de governo tirânico, revelamos nosso impulso de tratar de discussões sobre o “socialismo real”, tão intoxicada nos dias de hoje. Vejamos, por exemplo, o imenso número de artigos publicados em periódicos que tentam determinar qual era a posição de Dmitri Shostakovich diante do partido bolchevique.

Em um artigo publicado pela Universidade de Manitoba, Jennifer Gerstel (1999, p. 35) afirma que é surpreendente o fato de a arte soviética ter sobrevivido, considerando a falta de apreço que Stalin tinha por ela. Complementando o argumento por meio de uma citação a Richard Taruskin (1997), a autora enfatiza a mortal dureza e o stress pelos quais compositores russos estavam submetidos, especialmente Shostakovich.

Sabemos que o músico soviético, já desde 1927, compunha sinfonias patrióticas, como a Sinfonia n. 2. Contudo, para ter uma percepção mais crítica do momento histórico, é necessário lembrar a heterogeneidade do partido bolchevique, pois, ao contrário do que bizarrices como o Brasil Paralelo tentam mostrar, as visões dos comunistas soviéticos eram bastante distintas entre si e, constantemente, conflituosas. Shostakovich era patrocinado por Tukhachevsky, um general soviético de alinhamento trotskista. Isso significa que o amparador do artista era alguém que tinha conflitos diretos com Stalin (PASTOR; HOFFMAN, 1999, p. 175). Isso pode ser uma das razões pelas quais o músico possa ter passado a desenvolver relações conflituosas com o secretário-geral.

Devido a essas relações, alguns analistas tendem a ver o aspecto elogioso e exaltador do regime socialista na obra de Dmitri Shostakovich como irônico. A ironia ali serviria para camuflar uma espécie de crítica social (o que é algo comum, em ditaduras, o nosso caso brasileiro é um exemplo disso). O ato de tentar imputar, contudo, uma linguagem irônica a toda a obra do autor que possui patriotismo é uma loucura completa. Em primeiro lugar, porque a União Soviética e sua história é muito maior do que Stalin (qualquer historiador decente sabe disso) e, portanto, o fato de o músico ter tido problemas com o secretário-geral não necessariamente implica em problemas com o regime socialista como um todo. Em segundo lugar, porque a própria relação entre o compositor e Stalin era mais nebulosa do que os textos que tratam dela fazem parecer. Muito se argumenta que havia uma censura naquela ocasião política e, por isso, representantes do governo prestavam visitas a artistas frequentemente. Porém, não seria isso uma preocupação e, ao mesmo tempo, um reconhecimento da importância da música? A questão é respondida quando pensamos na arte enquanto objeto associado a um projeto de formação social específico. Os líderes soviéticos almejavam posicionar a arte de sua nação de forma a associá-la a um ideal bolchevique, anticapitalista e, acima de tudo, fora de uma lógica ocidental. É evidente, no entanto, que esse controle possa soar como repressivo (embora em uma entrevista, George Lucas diga que sentia inveja dos cineastas soviéticos “I’d say, well, I know a lot of Russian filmmakers and they have a lot more freedom than I have.”).

É curioso que tudo o que não pertence ao ocidente, que é vendido a nós como “civilizado” e “livre”, é recebido por nós como uma ditadura terrível. Todas as tentativas de fuga de uma lógica de produção capitalista são retratadas como terríveis: Cuba (lembro de Ricardo Amorim, que disse, em tom de crítica, que lá só há três coisas que funcionam: educação, segurança e saúde); China (que sempre pensamos que possui condições de trabalho terríveis, embora o salário mínimo lá seja quase o dobro do brasileiro e a carga horária seja de 44 horas); Vietnam (que mesmo sendo um país pobre, foi um exemplo de organização e luta contra a pandemia). Ainda assim, em vez de olharmos para o próprio umbigo, em vez de pensarmos que nossa população tem comprado ossos para comer em decorrência do subemprego e das assassinas reformas de Temer e Bolsonaro, preocupamo-nos com a situação de outros países e dizemos que não queremos ser como eles.

Do ponto de vista artístico, o quanto nós mesmos somos livres? O quanto a indústria cultural não nos deixa refém de uma lógica produtiva desumana? É curioso que tentemos encontrar ironia na obra de um compositor soviético sendo que até hoje temos resquícios de nosso regime militar e de um mundo liberaleco em que artistas deixam de exercer seu trabalho porque precisam de algo que ajude a pagar melhor as contas. Quantos pintores, escultores, músicos, poetas e dançarinos nós perdemos diariamente porque as pessoas têm medo de dedicar a vida a arte por conta de vivermos sob o regime do capital?

Mas não prenderei meu argumento a isso. Volto a Shostakovich e aos sinais de ironia. É dito que um dos principais indícios de que há uma crítica do compositor ao regime político que vive é o fato de seus quartetos e quintetos, que eram menos cerceados pelo controle estatal, não possuírem um aspecto tão patriótico quanto suas sinfonias e concertos. Ora, à primeira vista, pode parecer um bom argumento, mas quartetos de cordas e quintetos exigem um decoro diferente de sinfonias e concertos (justamente por isso o controle era menor). Para compreender isso melhor, faço uma simples analogia: o poeta Horácio escreveu diversos tipos de versos. Entre suas obras, destaco aqui as Sátiras e o hino (Carmen Saeculare). O mesmo indivíduo escreveu dois tipos de obra, mas seu comportamento, suas denúncias, seu julgamento, seu humor e tudo aquilo que podia se manifestar dependia da adequação ao decoro do gênero poético. Da mesma forma, Camões escreveu os Lusíadas e também escreveu o Filodemo, uma comédia. É evidente que o narrador de cada uma dessas obras apresentar-se-ia de distintos modos, mas isso não implicava que Camões estava tendo uma relação diferente com Portugal; ao contrário, mostra que o mesmo indivíduo constrói formas múltiplas de adequação social. Assim, Shostakovich manifesta-se diferente em quartetos porque trata-se de um gênero que exige um decoro menor, mais brincalhão do que uma sinfonia e isso não é necessariamente um indicativo de que havia denúncias escondidas do regime soviético em sua obra por meio de uma “ironia”.

Ressalto que isso não é uma apologia ao regime soviético e nem um posicionamento final sobre a relação entre o compositor Dmitri Shostakovich com seus governantes; é apenas uma reflexão que deseja apresentar alguns debates que talvez digam mais sobre nós mesmos do que sobre uma união de repúblicas que não existe mais. Afinal, o que temos a dizer sobre a nossa própria liberdade de sermos artistas num contexto em que o mercado pauta a nossa forma de organização social e nosso único incentivo para valorizar a cultura é o nosso próprio amor pelo que ela nos proporciona?

Como disse, aqui não há espaço para desenvolver esses temas da forma que eles exigem, mas espero ao menos te proporcionado um momento de reflexão produtivo. Acredito que para chegar a um debate melhor sobre esse assunto, deveríamos expandir isso para um livro… ou para uma conversa numa mesa de bar.

Antes que eu quebre o decoro deste texto, vou encerrá-lo.

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