Retorno

Ivanildo Jesus

A Beleza do Som
A Beleza do Som
6 min readFeb 4, 2024

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“Saiba que eu só vim obrigada pela minha mãe” — diz ela entrando na sala, com feição de poucos amigos, braços cruzados, testa franzida e olhar provocador. Nas férias nós organizamos a vida, durante os hiatos letivos, o filme da existência é repassado até à exaustão. Decidimos o que fazer, o que não fazer, onde continuar investindo nossa energia e esforços. Repensamos quem queremos ser e quem não queremos ser. Temos saudades de alguns amigos, de outros nem tanto. Praticamos uma espécie de higiene mental das expectativas sociais e tentamos encontrar um pouco mais de quem somos.

Aula de teoria

A turma é antiga, não tem ninguém novo, sabemos nossos nomes o que dispensa uma dinâmica de apresentação que, às vezes, causa o famoso revirar de olhos. Começo cantando, é aula de música, de teoria da música, mesmo assim, música, então tem que cantar. Eu canto e toco e quando passo por uma nota específica, eles batem palma. “Fácil” — digo, eles assentem. Começo. As palmas dividem-se em antes e depois da nota certa. As férias mostram-se exitosas. O exercício, no final das contas, parece não ser tão fácil assim.

Canto outras vezes, repetimos e eles vão melhorando. Digo “bom, agora que vocês já sabem o som da nota, não vou mais cantar com a escala, só vou tocar e quando vocês ouvirem, palmas”. Sobrancelhas sobressaltadas, risos de canto de boca, olhos esbugalhados, mãos em riste, começo a melodia no piano. Antes de começar a tocar, ouço o silêncio, a concentração no ar cria uma atmosfera de percepção propícia ao ditado. Os ouvidos, até então dispersos, atingem o clímax da sua atenção.

Toco a melodia, não mais que uma escala com variações. Eles acertam a palma. Peço para ficarem de pé e em roda, bufam. Uma dificuldade tremenda com a roda, lhes digo que os pequenos que os antecederam, acertam a roda com mais eficiência. Riem do deboche. Em roda, peço-lhes para, assim que ouvir a nota memorizada, dar um passo à esquerda (acalmem-se, não é doutrinação). Aumento a velocidade da música, a roda gira, se esbarram, riem, a roda se disforma. Paro, rio junto. “Vamos começar de novo”- digo, toco a nota que deveria ser memorizada, eles rodam quase que perfeitamente, combinando som e movimento.

Nos sentamos. Agora, após a prática ativa, partimos para a teoria. Escrevemos a escala. Acho que músico tem que saber escrever música, manter as regras da grafia musical por perto não faz mal a ninguém. Para cada faixa de aprendizagem, um desafio certo. Há os que precisam aprender a escrever a clave de sol, que lhes guiará a vida toda, há os que precisam aprender os lados corretos das hastes e há os que, após ouvir e cantar a escala, conseguem escrevê-la.

Penso na minha aluna resistente, revoltosa. Imagino o que deva ter sido essas férias em casa, a briga homérica entre continuar ou não. Conjecturo se preciso conversar, mas já não tínhamos conversado antes das férias? O que mudou em um mês distante? Reflito comigo.

Prática em conjunto

Imagem de Yan Krukau

Após essa aula teórica, temos a prática em conjunto. A cereja do bolo, o fino do pau de sebo. Eu passo as minhas férias inteiras às voltas com um pensamento: Qual será a programação artística dos infantes? O que devo colocar no repertório que seja pedagógico e artisticamente interessante para eles? O que eles terão vontade de convidar os coleguinhas para ir vê-los tocar? É sempre uma luta. Se pedagógico demais, mas artisticamente desinteressante, não suscitará evolução, só desinteresse. Se demasiadamente artístico, mas pouco didático, a técnica não dará conta dos desafios.

Essa é uma preocupação legítima. Há o que eu gosto de tocar, o que eu quero fazer e pode até ser que, através do meu gostar, eles aprendam a gostar também, porém é tão interessante quando construímos juntos. Quando juntos pensamos artisticamente no fazer.

Nas férias, enquanto passo a pensar no que faremos no semestre vindouro, um aluninho de violoncelo, de prática em conjunto, me manda mensagem: “Eu tenho uma sugestão, Skyfall do James Bond”. Eu havia dito sobre a possibilidade de fazermos músicas de filmes, como sobre a possibilidade de fazermos barroco, valsas, arranjos de sinfonias, entre outras programações artísticas que me invadem durante o semestre. A minha cabeça (e a deles) está sempre a pensar na nossa pequena programação artística “o que vamos tocar?”.

Decidir a programação com antecedência é um ato pedagógico. Quando mando a playlist com o repertório que deve ser feito no semestre, na mente deles, aquele trabalho da curiosidade tão necessário à aprendizagem, começa a tamborilar. Eles se imaginam tocando, eles se imaginam ouvindo, alguns vão atrás das músicas, os mais dedicados já pedem os arranjos e organizam suas pastas. Todo o ritual pedagógico-musical dá-se início a partir da escolha artística.

Quando o pedido do Skyfall do James Bond chegou, toda a minha programação de Barrocos já estava feita, pensando no primeiro semestre. O Concerto Polonês de Telemann, tão bonito e acessível, o concerto “Alla rusticade Vivaldi, ao mesmo tempo desafiador mas enérgico e revigorante. Penso, é para eles e com eles. Me ponho a montar um repertório de filmes. Vejo arranjos, pesquiso, pesquiso e pesquiso. A parte logística é sempre um desafio. Admiro quem escreve tudo o tempo todo para os alunos, não tenho, infelizmente, essa vocação. Faço então o que posso: um garimpo diário de possibilidades, isso aqui pode vir a ser interessante algum dia.

Consigo bons arranjos, não sem antes pensar que precisamos de uma Hall Leonard brasileira que invista pesado em termos logísticos, artísticos e musicais no nosso popular, sem o conservadorismo dúbio e esperneante que nos açoita. Uma editora de música que pense no pedagógico e artístico, que mastigue um pouco para que nós professores, alunos e entusiastas tenhamos um ponto onde se encontrar.

Escolho as músicas, organizo os arranjos e deixo tudo pronto. Se as aulas começassem amanhã, era só começar a reger. Aviso-os, ainda nas férias, da decisão. Faremos primeiro o repertório de filmes, depois o Barroco. O ano já está decidido. Nossa pequena programação artística está montada, afinal temos duas datas de apresentação, logo precisamos de repertório distintos.

Aprender, nessa fase, a apreciar uma programação artística, será salutar para o futuro. Quando eles apreciarem outras escolhas artísticas, se questionarão se aquilo os contempla ou não, se dialoga com eles ou não, se os motiva ou os ignora. E, do mesmo modo que eles sentem-se livres para me dizer o que devemos fazer em grupo, que se sintam livres para, em seus grupos no futuro, darem direções a seus diretores artísticos.

Adeus férias

Volto à prática em conjunto. Primeira aula do ano, tudo extremamente desafiador, saímos do repertório grade 1 para o repertório grade 2. Uma dificuldade sem fim, desafio atrás de desafio. Começo o ensaio, primeiro tocamos, depois falo. Lutamos um pouco com a partitura, agora vemos o primeiro bemol, um disparate.

O arranjo se prova eficaz, fazemos a primeira execução “da capo ao fim”. Quando digo execução apelo aqui à polissemia da palavra. Ensaio segue, lemos outras peças. Quando a aula está prestes a terminar, começo a falar do ano, sobre como organizar os estudos, da importância de ouvir e sistematizar a rotina.

Minha aluninha, que veio obrigada pela mãe, pergunta-me: “Professor, se eu trouxer uma música, você me ensina a tocar?” — antes que eu responda, outro aluno o faz: “ele te ensina outro dia, hoje é o nosso momento”. Sorrio. “Sim, escolhe a música, vamos ver o que é possível” — respondo.

A melhor motivação é, às vezes, uma boa aula, que não se faz sem planejamento e escuta. Objetivo atingido. Eles sentem-se motivados e desafiados para o semestre. Penso naquele famoso ZDP do russo, na minha cabeça faço uma pequena prece para São Vygotsky e espero estar entre os seus agraciados. Que tenhamos um bom semestre. Afinal as férias, enfim, acabaram.

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