Schopenhauer: Entre-Mundos Artístico Filosófico

Daniel Vieira de Carvalho

A Beleza do Som
A Beleza do Som
8 min readJan 29, 2023

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O Romantismo é um movimento muito peculiar, que precisa ser observado como um quadro repleto de linhas, formas, texturas, nuances, um lugar onde todas as artes experimentavam um momento da história humana que se transformaria em uma espécie de portal para uma nova dimensão do Real. Foi ali onde a perversidade da racionalidade começou a ser questionada pelas vísceras, dando lugar tanto a um espaço muito mais amplo para os próximos estilos (em especial a música do pós-guerras), quanto fornecendo condições filosóficas para pensar os instintos e as paixões humanas.

The Old Man — Francisco Goya (1746 -1828)

A coerência estética do período do Classicismo havia acabado. O espírito humano gritava e não podia mais ser contido por regras sucintas e retóricas de harmonia, não cabia mais a fraseologia lógica da melodia, muito menos a constância do baixo contínuo; a orquestra precisava ter uma massa sonora mais potente, a pontuação das partituras necessitavam de rabiscos semelhantes aos raios ou aos ventos tempestuosos. As vozes precisavam de mais espaço, pois o espaço havia sido comprimido pelas tensões do cenário geral e os acordes não poderiam ficar gravitando em torno de um tom ditador, muito menos os ouvidos poderiam se concentrar completamente se não fosse oferecido, no fundamento mesmo da arte, algum tipo entorpecedor, um narcótico estético. Os artistas se permitiram lançar a si mesmos no que Schopenhauer identificou como fantasmagoria do mundo, mergulharam na tempestade de som e fúria e trouxeram à tona uma gama de experiência completamente diversa das anteriores.

Não é possível compreender o que significa o Romantismo sem entender de que modo, na música, o barroco e o classicismo foram assimilados e integrados, dando o material próprio para a efusão do sentimento de infinito, do surgimento de uma religião que se ocupa mais com a luz interna que a externa, de um modo de ver o mundo que deseja criar mitologias, se dar o direito da fantasia em suas mais variadas expressões. E também de levar o indivíduo às suas capacidades extremas, mudar a perspectiva de luz e sombra, afundar mais a alma humana no pântano do planeta, na alma do mundo.

O Sturm und Drang foi comparado por alguns estudiosos a uma espécie de revolução que antecipou verbalmente em terras germânicas aquilo que, pouco depois, seria a Revolução Francesa no campo político. Por outros estudiosos, ao contrário, foi considerado como uma espécie de reação antecipada à própria Revolução, enquanto se apresenta como reação contra o iluminismo, do qual a Revolução Francesa foi o coroamento.

Do ponto de vista histórico, o Iluminismo, com sua clara e distinta luz do esclarecimento, influenciou fortemente várias revoluções dos séculos XVIII e XIX, estendendo suas reverberações até o século XX.

Do ponto de vista artístico, o Romantismo vai se consolidando no início do século XIX e estende suas reverberações até nossos dias.

Diante desta ebulição histórica, tais disparates favoreceram o nascimento de uma produção artístico-musical que retratou a insatisfação dessa realidade, uma reação emanada pelo estado de alma em reação a esse mundo. Assim, a produção musical passou a interpretar os acontecimentos da vida e foi enriquecida pelas composições de Ludwig van Beethoven (1770–1827), Frédéric Chopin (1810–1849), Robert Schumann (1810–1856), Richard Wagner (1813–1883) e outros responsáveis por buscar o fortalecimento do nacionalismo e do naturalismo expressos em música descritiva, em poemas sinfônicos e em Lieds […] Esta nova realidade marcou a transição do Classicismo para o Romantismo. No Classicismo, a música foi caracterizada pela coerência técnica que visou a busca de uma estrutura musical perfeita e universal, na qual o artista se expõe de maneira impessoal, métrica, sintética e definitiva. Já no Romantismo, a produção musical primou pelos anseios da alma, pelas paixões e pelo sofrimento […]

Uma boa parte da música romântica é predominantemente instrumental e é muito expressivo que o som, por si mesmo, seja o material mais importante dos compositores neste período.

Em inúmeras obras musicais entre os séculos XVIII e XIX, no entanto, encontramos subtextos, discursos melódicos ou mesmo uma programação bem específica sobre quais tipos de emoções o executante da música e o ouvinte deverão experimentar durante a audição.

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A música programática, nesse aspecto, é um desses vários lugares onde o romantismo se permite a palavra e, ainda assim, ela é considerada como partícipe de um enredo e cenário imaginativo de grande eloquência.

Podemos ouvir a música de Franz Schubert, com poema de Johann Wolfgang von Goethe: Erlkönig, para piano e voz. O tema principal gira em torno de uma criança, febril, seu pai ao cavalo, buscando socorro, e o Rei dos Elfos que assombra a criança.

As tercinas contínuas e oitavadas no piano fazem o papel do galope do cavalo que leva o pai e o filho numa jornada macabra; o cantor interpreta, com variação tímbrica própria, os três personagens: o pai, o filho e o Rei dos elfos. Se o cantor tem o papel de contar toda a trama textual, o piano fica responsável por promover o movimento desesperante do cenário geral, enfatizando diversas vezes a melodia cantada, como se quisesse suprimir a palavra e deixar a música sem palavra alguma, só o terror sonoro da cena.

Dentro do espectro filosófico, Schopenhauer foi um dos primeiros a abordar a música como o único meio de acesso ao Em-si do mundo, porque, para ele, podemos permanecer neste mundo desde que tenhamos a possibilidade de contemplar o mundo, por meio da arte, como se já o tivéssemos abandonado.

O ato de fazer música é a melhor forma de se consolar diante de um mundo que é, de acordo com Schopenhauer, o pior dentre todos os possíveis. O ato de fazer música é o lugar da criatividade, da imaginação, do instinto, dos sentidos, dos corpos, da Vontade. Ouvir música é bom, mas não chega a produzir os efeitos do fazer e, apesar de ajudar o ser humano de várias maneiras e gerar conteúdos imaginativos, mentais, psicofísicos etc., não é um ato de criatividade, é estar anestesiado passivamente, sem ter o benefício direto deste ato.

A música é a repetição do mundo inteiro, porém sem corpo. Ela nos oferece “o coração das coisas” (Herz der Dinge). Nela “as zonas mais recônditas de nosso ser se veem forçadas a expressar-se, “tal como se falassem”. (zur Sprach gebracht)” É na música que a “coisa em si” — “efetivamente se põe a cantar” (es tatsächlich zu singen an).

Arthur Schopenhauer nasceu em Dantzig (atual Gdansk, na Polônia) em 1788 e demonstrava claramente, desde muito cedo, seus desejos por uma educação clássica, ao invés da vida de comerciante que seu pai almejava –apetecia ao jovem aspirante a filósofo o latim, grego, literatura, filosofia e, todas as noites, se debruçava a ler os livros de romance que Heinrich Floris Schopenhauer escondia em um armário trancado, depois Rousseau e Voltaire e, principalmente, lia sobre as belas-artes, tocando flauta nas horas vagas, mesmo que a contragosto do pai.

Schopenhauer seguiu os fluxos de seu tempo, colocando novamente o problema kantiano da Coisa-Em-Si, agora sob nova perspectiva, uma que abriu campo de respiração para a contemporaneidade. Todos os filósofos desejavam encontrar um sentido para o mundo pós kantiano dos fenômenos, desejavam desvelar o que há por detrás dos fenômenos. A Vontade, que não é um Deus Pessoal, nem o Espírito Absoluto de Hegel, é cega e a-racional, é indiferente a tudo, não há nela intencionalidade maligna, ela quer e ela é querer.

Schopenhauer não se restringe a apenas modificar nomenclaturas e criar uma série ordenada e bem subdividida de conceitos, como fez Kant. Nas palavras de Safranski:

Sua filosofia não tem analogia alguma com a arquitetura grega, que apresenta proporções grandes, simples, a revelarem-se de uma vez ao olhar: antes, lembra muito fortemente a arquitetura gótica […] é uma satisfação singular pela SIMETRIA, que ama a multiplicidade variegada, para ordená-la e repetir a ordem em subordens, e assim por diante […] Sim, às vezes ele leva isto até a brincadeira, e então, por amor a essa inclinação, vai tão longe que pratica violência manifesta contra a verdade, lidando com esta como lidavam os jardineiros góticos […]

Para Schopenhauer a Vontade é o mesmo que Vida. A razão não pode colocar o Absoluto, pois ele se posiciona para aquém, numa dimensão mais primordial, estando muito mais relacionada ao corpo de desejo que é o homem do que se podia imaginar nesta época. A Vontade, assim colocada, raiz de todas as manifestações da existência, fonte primeira de todas as minhas representações, pode ser experimentada no meu corpo que é partícipe de uma extensa comunidade de seres, onde cada um deles, desde os insetos, os humanos, as pedras e os confins do universo são graus de objetivação da Vontade. A analogia de um piano cósmico é muito eficaz, Schopenhauer chega a cogitar que, por exemplo, às notas mais graves se correspondem os corpos inorgânicos, movendo-se musicalmente em intervalos de quarta, quinta e oitavas. Outra analogia é possível diante do nosso contexto crítico atual, a saber, que às notas mais graves se correspondem às ações inflexíveis de um conservadorismo extremista brasileiro que avança violentamente, contrariando todos os valores democráticos.

Ainda sob este aspecto, a razão humana nada mais seria que uma dessas várias objetivações da Vontade. O indivíduo pode ter em si mesmo apenas a evidência afetiva da Vontade, não a pode enclausurar num sistema filosófico para ter controle sobre ela, ao contrário, encontra-se completamente rendido e indefeso, trata-se de uma vontade cega (blinder Wille):

[…] algo de vital, mas igualmente opaco, que não assinalava nada para qualquer pensamento, muito menos acenava para o senso comum e não apresentava o menor desígnio. Seu significado era justamente que não tinha qualquer significado: reconhecida como tautológica pelo próprio filósofo, porque a vontade não se distingue da própria vida. Deste modo, para Schopenhauer, a “vontade de viver” (Wille zum Leben) não era mais que uma repetição linguística dos mesmos termos equivalentes, não passava de uma duplicação da referência ao mesmo objeto com nomes diferentes.

Schopenhauer destituiu do pensamento a capacidade de alcançar a iluminação a partir de um trabalho de autorreflexão racional, abrindo possibilidades para pensar a partir dos corpos e, principalmente, da Vontade. Em suas próprias palavras:

[…] não se pode submeter a vontade ao princípio de razão, vigente no universo da representação. A vontade é fundamento, mas ela própria não apresenta fundamento. A metafísica, no seu nível mais profundo, escapa à razão. Mas esta, ao nos tornar conscientes da vontade como princípio, também nos ensina a não ser apenas seu prisioneiro.

Referências Bibliográficas

REALE, Giovani. História da Filosofia: Do Romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991 (coleção filosofia).

SCHOPENHAUER. O Mundo Como Vontade e Representação. Tradução, apresentação, notas e índices por Jair Barboza. 2° edição. São Paulo: Editora UNESP, 2015.

SCHOPENHAUER. Arthur. O mundo como vontade e representação, III pt.; Crítica da filosofia kantiana; Parerga e paralipomena, cap. V, VIII, XII, XIV. Traduções de Wolfgang Leo e Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. 2° edição. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: Biografia de uma tragédia. São Paulo: Geração Editorial, 2001.

SAFRANSKI, Rüdiger. Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia: uma biografia. Tradução de William Lagos. São Paulo: Geração Editorial, 2011

WILBER, Ken. Psicologia Integral: consciência, espírito, psicologia, terapia. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2007

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