Sidney Chalhoub e seu historiador, Machado de Assis

Alessandro Oliveira

A Beleza do Som
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6 min readMar 12, 2023

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História e Literatura são duas áreas que, hoje, enxergamos como distintas, embora relacionadas. Mas nem sempre foi assim! Até o século XVIII, na verdade, não tínhamos um conceito de ciência iluminista e de uma separação de áreas pela sistematização do saber pós-romântica, o que gera nossa necessidade de separar os saberes de forma tão incisiva. Ao escrever um trabalho historiográfico, os autores até os princípios da Modernidade lançavam mão de muitos recursos narrativos e até inventivos que são aspectos que associamos à literatura; por exemplo, ao descrever as ações de Alexandre, o Grande, ainda que não tivesse fontes para tal, um indivíduo investido da imagem de historiador poderia sem problema nenhum inventar um discurso supostamente feito por Alexandre em seus escritos.

“Nos séculos XVIII e XIX, essas relações são alteradas. O respaldo documental passa a ser imprescindível para a narrativa do historiador (sim, é preciso enfatizar que a história é sempre uma narrativa, ainda que possua um estatuto científico) e as possibilidades inventivas são limitadas pela ótica de uma História Oficial. A História Metódica Francesa deixou isso bem evidente: Documentos são os traços que deixaram os pensamentos e os atos dos homens do passado. Entre os pensamentos e os atos dos homens, poucos há que deixam traços visíveis e estes, quando se produzem, raramente perduram: basta um acidente para os apagar. Ora, qualquer pensamento ou ato que não deixou traços, diretos ou indiretos, ou cujos traços visíveis desapareceram, está perdido para a história: é como se nunca tivesse existido. Por falta de um documento, a história de enormes períodos do passado da humanidade ficará para sempre desconhecida.”(LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 15).

À primeira vista, parece bom, em especial, em um período de violentíssimas Fake News, que a história se limite aos documentos para produzir suas narrativas. O problema disso é que a documentação oficial do passado foi criada por pessoas muito específicas e que nos relegaram a conhecer apenas um lado da história. Pensemos que, na Idade Média, eram os reis, os cavaleiros, os nobres, a igreja e outros membros de setores pequenos, porém poderosos da sociedade quem mais eram capazes de produzir documentos oficiais. Enquanto isso, camponeses e servos, os “vilões”, que eram a maior parte da sociedade, raramente possuíam acesso às condições de produção desses materiais que as escolas tradicionais chamavam de fontes históricas.

Felizmente, durante o século XX, tivemos o advento da Escola dos Annales, que passou a enxergar as fontes históricas de uma maneira mais ampla. Na verdade, sendo o historiador, no fim das contas, uma espécie de investigador, quaisquer pistas do caso a ser analisado devem ser valorizadas. Marc Bloch bem explica:

“O historiador, por definição, está na impossibilidade de ele próprio constatar os fatos que estuda. Nenhum egiptólogo viu Ramsés; nenhum especialista das guerras napoleônicas ouviu o canhão de Austerlitz. Das eras que nos precederam, só poderíamos falar segundo testemunhas. Estamos, a esse respeito, na situação do investigador que se esforça para reconstruir um crime ao qual não assistiu; do físico, que retido no quarto pela gripe, só conhece os resultados de suas experiências graças aos relatórios de um funcionário de laboratório. Em suma, em contraste com o conhecimento do presente, o do passado seria necessariamente ‘indireto’.” (BLOCH, p. 69).

Sendo nosso acesso ao passado sempre indireto, não importa se o documento é oficial ou não, ele ainda é um mero ponto de vista que deve ser analisado friamente. Isso não é relativismo, é apenas a constatação de que as fontes consideradas oficiais, que foram utilizadas para a narrativa dos feitos de aristocratas, não trazem uma verdade sobre um fato, mas apenas uma possibilidade investigativa. Não considero essa percepção triste; ao contrário, acho bela. Acho bonito perceber como tudo o que foi produzido, quando qualificado pela historiografia, passa a ser um posicionamento discursivo específico, pois essa abordagem não limita nossas fontes. Na verdade, as amplia ao seu potencial máximo.

Hoje, temos consciência de que as obras literárias, embora não sejam um documento oficial, como posto pelas escolas historiográficas tradicionais (o Historicismo Alemão e a Escola Metódica Francesa), nos oferecem um posicionamento discursivo diante do contexto em que são produzidas. Em outras palavras, são fontes históricas valiosíssimas e podem enriquecer nossa percepção sobre um determinado período histórico. Por exemplo, nossa percepção sobre a realidade do século XIX no Brasil, se limitada aos documentos produzidos pelo próprio governo, será evidentemente enviesada por uma narrativa eurocêntrica e colonial. Se, contudo, observarmos as obras escritas no período, como as de Luiz Gama e até as de Machado de Assis, escritor já amplamente difundido no cânone nacional, poderemos desenvolver uma análise multifocal, que trabalha as relações sociais levando em conta os pontos de vistas de escritores negros que estavam cotidianamente envoltos de maiorias menorizadas.

É sob essa égide que Sidney Chalhoub brilhantemente escreveu a obra Machado de Assis, Historiador. Tomar como base para a análise de um período histórico um escritor, negro, ocupante da Diretoria da Agricultura, que mediava a política de terras, que tinha origem humilde e que hoje é considerado um dos maiores da história brasileira, exige diversos cuidados. As nuances na obra de Machado podem ser vistas pelo que é dito e pelo que é propositalmente não dito, de tal forma que podemos ver as contradições de uma sociedade paternalista por meio de um cotidiano narrado nas ruas do Rio de Janeiro.

O argumento principal de Chalhoub (2004, p. 14) é de que “ao contar suas histórias, Machado de Assis escreveu e reescreveu a história do Brasil no século XIX”. O fato é que a ideologia senhorial é exposta detalhada e cuidadosamente pelo escritor, que em várias obras, como em Helena, Iaiá Garcia e Memórias Póstumas de Brás Cubas brinca com a decadência de uma classe apodrecida no final do Segundo Reinado. A ironia da morte também é posta em evidência nas três obras, como, por exemplo, o fato de a morte do conselheiro Vale assombra todo um grupo social; sua vontade é inviolável mesmo após sua morte. Nas palavras de Chalhoub (2004, p. 17), “o morto conhecia plenamente seu direito de governar os vivos”.

Essa é a ideologia paternalista: o reconhecimento do direito de governar e a apreciação da forma com que se governa. Só que essa ideologia precisa, de alguma forma, lidar com o dominado, que possui suas próprias características, que formam uma alteridade, que evidenciam seus próprios costumes. Para fazê-lo, os grupos aristocratas transformavam as características dos dominados na extensão de sua própria vontade, ou seja, só podem existir em decorrência da própria vontade dos senhores. Isso ocorre em Dom Casmurro, quando Capitu trata a vontade de José Dias de ir ao teatro como uma percepção de D. Gloria que o próprio Bentinho gostaria de ir.

Em Brás Cubas, a manifestação de um aristocrata morto que narra sua história, discute seu ponto de vista de uma maneira ironizada e decadente, mostra também um domínio senhorial rompido. Chalhoub (2004, p. 65) aborda amplamente o fato de Brás debater acerca da função do nariz para mostrar que todos esses apontamentos são apenas uma forma de justificar uma posição hipócrita no mundo. Assim, podemos ver que o historiador que evidencia os aspectos historiográficos na obra de Machado de Assis, brilhantemente, observa os detalhes que muito nos dizem sobre os anos finais da escravidão no Brasil.

Esse texto foi um convite duplo. Primeiro, para conhecer a obra Machado de Assis, Historiador sob o viés de que a literatura é uma fonte histórica valiosíssima. Segundo, para ler (ou reler) as obras de Machado tendo em vista as nuances que podem demonstrar aspectos fundamentais das relações sociais e das dinâmicas no cotidiano do século XIX. Espero ter escrito de forma minimamente decente, ao menos o suficiente para tratar de autores de calibre inquestionável.

Referências Bibliográficas:

BLOCH, Marc. Apologia da História: ou o ofício do historiador. São Paulo: Zahar, 2002.

CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. Ebook: Companhia das Letras, 2004.

LANGLOIS, Charles Victor; SEIGNOBOS, Charles. Introdução aos Estudos Históricos. Trad. Laerte de Almeida Moraes. São Paulo: Renascença, 1946.

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