Uma ode à saúde mental

Adyr Francisco

A Beleza do Som
A Beleza do Som
5 min readNov 19, 2023

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Gostaria de abordar um assunto (um dos…) que ainda é considerado tabu — principalmente no meio da música de concerto/sinfônica — mas que, a meu ver, merece todos os holofotes: saúde mental.

Inicio este escrito com um relato pessoal muito recente: pela primeira vez na minha vida/carreira, não passei sequer da fase de pré-seleção de um concurso orquestral. Vocês podem imaginar o tamanho da frustração (guardem esta palavra) que senti ao receber o resultado. Dito isto, aqui vai a provocação: em algum momento vocês já pararam para refletir em qual seria sua ou suas reações com tal notícia? Se ainda não o fez, este é um bom momento.

Para as pessoas que conseguem ter acesso a uma formação musical e que, consequentemente dão prosseguimento à carreira, é fato que não aprendemos como lidar com nossas frustrações, com os “nãos” que já recebemos ou os que ainda vamos receber. Na minha percepção este é um retrato de nossa sociedade e do sistema econômico vigente em que somos forçados a viver. Querem um exemplo do que estou dizendo? Atualmente, muitos professores de música (e não só) não se dizem mais professores, educadores, mas sim, “mentores”, “coaches”. As aulas não são mais chamadas de aulas, classes, mas sim, “mentorias” ou “cursos”. Além do mais, os alunos são os “mentorados” (acertei a palavra?). Estes, precisam passar pelo crivo dos ditos “mentores” numa espécie de leilão, onde quem pode pagar mais, vai ter a “honra” e o “privilégio” de aprender um instrumento musical e, assim, os mesmos “mentores” poderão tornar-se “músicos ricos”. Acertei ou “estou viajando”? O efeito disso tudo na prática? Uma enxurrada de frases prontas, uma meritocracia um tanto quanto difusa, entre outras coisas que, se não bem administradas pelos alunos, — digo, mentorados — pode acabar acarretando num esgotamento mental.

O exemplo que dei foi um tanto esdrúxulo e generalizado, pois obviamente existem colegas muito sérios que utilizam-se das mesmas táticas e linguagens, mas há de se convir que, infelizmente, as redes sociais estão repletas de pessoas despreparadas oferecendo tudo aquilo que elas não podem dar. Sei também que precisamos ganhar nosso sustento de maneira adequada, mas questiono-me seriamente se não estamos cada vez mais perdendo o senso do educar, do cuidar e do formar não só instrumentistas, mas também cidadãs e cidadãos preparados para encarar o mundo “lá fora”, de compartilhar nosso conhecimento em prol de um bem maior, que é o de fazer arte e transformar, de certa maneira, a sociedade.

Conforme relatei muito brevemente em um de meus escritos anteriores neste mesmo espaço, quase desisti completamente da minha carreira (desisto um pouquinho todos os dias, confesso).

Há alguns anos, já residindo na Europa, tive o privilégio de assistir a um recital do pianista russo Grigory Sokolov. O que vi e ouvi foi tão absurdo, tão surreal, que chorei incessantemente por alguns dias e estava decidido a abandonar de vez minha carreira na música. Imagino que estejam se perguntando o porquê. Pois bem. Comecei a me fazer uma série de questionamentos que, hoje, percebo que foram um tanto quanto equivocados.

Não saia da minha cabeça o fato de Sokolov — até os dias atuais — ser o mais jovem vencedor da história do Concurso Tchaikovsky, um dos mais importantes e difíceis do mundo com assombrosos 16 anos de idade, e eu, à época do recital com 23 e recém chegado do Brasil, não ter conquistado absolutamente nada e estar enfrentando diversas dificuldades. O que deveria ter sido uma experiência enriquecedora (e foi!), quase se tornou a razão pela qual trocaria de profissão.

Graças a algumas pessoas, aos poucos fui entendendo que esses tipos de comparação não faziam o mínimo sentido. Só olharmos o percurso de “Grisha” e o meu para termos uma ideia: ele iniciou seus estudos de piano aos cinco anos na divisão para crianças especiais do Conservatório de música de Leningrado (hoje, São Petersburgo). Deu seu primeiro recital aos 12 e ganhou o Concurso Tchaikovsky aos 16. Eu iniciei aos nove num projeto social e nunca me imaginei músico. Percebem a diferença? Ele foi “moldado” para isso, o que já seria motivo o suficiente para invalidar todos os questionamentos.

Por que compartilhar mais esta experiência pessoal? Creio que isto aproxima e dá uma real dimensão do que vivemos cotidianamente, através dos diversos julgamentos ao qual estamos expostos. Seja por parte do público que nos assiste, seja por parte dos nossos próprios colegas. Os últimos citados, são em parte responsáveis pelos problemas de muitas e muitos. Ou vai me dizer que você nunca se estressou antes/durante/depois de subir num palco? Já parou para refletir sobre o motivo desse estresse/medo da performance? Será que tem a ver com o público, normalmente “leigo” que vem nos assistir ou com a pressão de tocar mal na frente de colegas/professores mesmo estando devidamente preparados(as)?

Dei toda esta volta meio sem fundamento propositalmente, com uma só intenção: que vocês busquem ajuda! Seja de pessoas próximas a vocês, seja de profissionais capacitados, mas não deixem de fazê-lo. O colega Daniel Vieira de Carvalho escreveu um texto interessantíssimo (“Os artistas estão doentes e precisam de terapia”) sobre este mesmo assunto neste mesmo espaço e recomendo a leitura.

Imagem de lalesh aldarwish

Pequenos conselhos, se é que posso me colocar na posição de dá-los: preparem-se para as frustrações e para os “nãos”, independente do seu nível, pois eles serão muitos, mas não eternos; evitem as comparações. Elas não nos levam a lugar algum. Cada um de nós sabe de sua trajetória e de suas particularidades; não caiam em papo de pessoas que vendem mundos e fundos, uma fórmula pronta onde tudo é ou vai ser maravilhoso, principalmente o aprendizado/aperfeiçoamento de um instrumento. Como na vida real, estes também envolvem muitos altos e baixos.

Infelizmente, não somos devidamente preparados(as) para lidar com estes sentimentos e, por esta razão, resolvi escrever este pequeno texto com alguns relatos para que, mesmo que minimamente, possa servir de farol para alguém que por um acaso se identifique.

Dito isso, bebam água e espalhem A BELEZA DO SOM por aí.

Até a próxima.

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