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Dark: O tempo é Deus

6 min readNov 19, 2020

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Em 2019, ouvi falar pela primeira vez da série alemã da Netflix, Dark. O trailer retratava um ambiente opressivo e sombrio, tal e qual o nome da série, numa pacata cidade fictícia localizada na Alemanha, Winden.

O primeiro episódio que vi seguia esse tom e, antes que desse conta, fui enredada numa trama de mistérios e mentiras entre várias famílias, cujos nomes se assemelhavam difíceis de decorar, tudo isso num cenário de viagens no tempo, de paradoxos complexos da física e discussões sobre os desejos mais profundos do ser.

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A família genealógica de Winden.

Uma teia intrigante

Quando a primeira temporada foi lançada em 2017, Baran bo Odar e Jantje Friese, os criadores da séria, anunciaram que haveriam apenas três temporadas. E, assim, Dark chegou ao fim dia 27 de junho de 2020. Mas pensar que os 26 episódios lançados foram planeados desde o início, para que pudéssemos chegar ao desfecho que temos hoje, faz-me perceber porque foi tão fácil embrenhar-me no mundo que Dark criou.

Um mundo construído ao pormenor. Cada personagem, cada cena, cada fala são peças que fazem parte de um puzzle complexo, que, se forem perdidas ou ocultadas, poderão fazer desmoronar a história.

Ver esta série é uma experiência única em muitos aspetos. Não é como assistirmos a uma peça de entretenimento qualquer. Exige concentração. Espera-se que o espetador siga com atenção a história e faça deduções por si mesmo. O próprio final da série não nos dá todas as soluções que procuramos para os mistérios levantados. Cabe a nós preencher os espaços em branco e oferecermos a nossa própria interpretação e significado.

Dark não é uma história de assassinato envolta em elementos supernaturais. Embora, inicialmente, essa fosse a visão para a série. É sobre uma comunidade de pessoas, ligadas por uma teia de mentiras que se conectam entre passado e futuro.

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Tão sombrio quanto Dark

A série começa com Ulrich Nielsen (Oliver Masucci), um polícia e pai de três filhos, que está a trair a esposa Katharina com a sua melhor amiga, Hannah Kahnwald. O marido de Hannah suicida-se ainda no início da história. Simultaneamente, um rapaz da cidade desaparece sem deixar rasto. O filho de Hannah, Jonas (Louis Hofmann), ainda em estado de choque, preambula pela floresta com os seus amigos à procura do stock de drogas que o rapaz deixou para trás. Nessa noite, o filho mais novo de Ulrich, Mikkel (Daan Lennard Liebrenz) também desaparece, levando a polícia a questionar-se se alguém tem como alvo os jovens de Winden.

Mas os desaparecimentos coincidem com fenómenos estranhos: animais que caem do céu mortos, falhas de eletricidade, luzes tremeluzindo e piscando descontroladamente. Alguns dos residentes mais velhos da cidade, incluindo a avó de Mikkel, murmuram sobre como os novos desaparecimentos lembram outros antigos de quando eram mais jovens. E uma misteriosa figura encapuzada olha para um recorte de jornal, onde se lê “Onde está Mikkel?”, risca a primeira palavra e reescreve a manchete como “Quando está Mikkel?”.

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A resposta para esse primeiro mistério não tarda a ser revelada, mas com essa resposta surgem novas questões. Em Dark, uma nova resposta leva a várias novas perguntas. Há um sentimento de ‘o que se está a passar?’ sempre presente, quase sufocante.

Winden é uma cidade sem cor e os seus habitantes vivem numa atmosfera de desepero e frustração constantes, como se não pudessem esperar por escapar dali. A fotografia da série exibe cenas dolorosamente simétricas, tons sombrios, movimentos precisos e ensaiados, que nos dizem que aquelas cenas se repetiram infinitamente no tempo (afinal esta é uma série sobre viagens no tempo). Desta forma, temos uma estética de pesadelo e uma sensação de horror melancólico que paira sobre este pequeno mundo elaborado.

Mesmo para cenas que representam o quotidiano — o gesto de tomar o pequeno-almoço, atravessar o corredor da escola, vestir o casaco — é transportada uma certa tensão, muitas vezes acentuada não só pela cinematografia, como pela banda sonora.

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O casaco de Jonas destaca-se entre os tons escuros da cidade.

Escravos da vontade

Não há verdadeiros vilões nesta história, personagens a quem podemos apontar o dedo por todo o mal causado. Nem mesmo Jonas e Martha (Lisa Vicari), os amantes condenados, podem ser responsabilizados, pois o destino está fora do controlo deles, e eles são apenas vítimas dos seus desejos e impulsos, que os prendem a um ciclo fadado a repetir-se uma e outra vez.

Em muitas histórias sobre viagens do tempo é possível de facto alterar o futuro alterando o passado. Mas há uma contradição nisso. Ao tentarmos alterar o passado, uma versão nossa tem conhecimento da realidade alternativa antes de o futuro ter sido mudado. É frequente resolverem este problema alegando uma sobreposição de realidades. Em Dark não se verifica este problema, porque o futuro simplesmente não pode ser alterado.

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Jonas e Martha, as personagens principais.

Questões como: ‘Há realmente livre arbítrio?’ ‘Até que ponto somos restringidos pelo destino?’ ‘Qual é o cerne da vida humana?’ arrastam-se (quase exaustivamente) até à terceira temporada, enquanto às personagens se desesperam por sair do loop temporal em que estão presas.

Este debate filosófico é inserido quando as personagens ao viajarem no tempo, se debatem com a escolha de poderem alterar o rumo dos acontecimentos. No entanto, é esse desejo de mudança que impulsiona o acontecimento que justamente se quer evitar. É uma espiral sem fim. “O início é o fim e o fim é o início”. Às vezes, pode acontecer um objeto sempre ter existido (e não ter uma origem concreta) apenas por existir no futuro.

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A ação acontece nas grutas de Winden.

Ninguém escapa ao destino

A inevitabilidade das nossas escolhas e o peso que o tempo carrega faz-nos ansiar por ver respondida a pergunta: ‘Vão conseguir, finalmente, as nossas personagens quebrar o ciclo?’. Haverá alguma maneira de poder alterar o futuro? O fim da série é suscetível de retirarmos várias conclusões e há até muitas teorias já a circular.

Talvez mesmo ao alterarmos o futuro, mesmo ao cortarmos a origem de todos os males, uma versão diferente da mesma tragédia volte a repetir-se. Fulano X poderá perder não o olho, mas um braço. A essência permanece a mesma, porque os nossos desejos e impulsos lideram-nos pelo mesmo caminho.

Dark é uma série difícil de começar, mas impossível de largar. Há alguns elementos semelhantes em outras produções, certos aspetos que nos soam familiares, até vermos desenrolar diante dos nossos olhos uma fila contínua de personagens, que se interligam pelas diferentes famílias e gerações de Winden, que representam passado, presente e futuro da mesma pessoa, um elenco extremamente coeso e bem conseguido, que poderia ser confundido com a verdadeira árvore genealógica de Winden.

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Uma personagem, duas atrizes.

Aqui não há o risco que vemos em muitas séries, em que nos apegamos a uma determinada personagem, associada como o herói ou a heroína, e, logo, o sucesso da história passa a depender do sucesso dessa personagem. Em Dark, o objetivo é vermos cessadas as nossas dúvidas e angústias quanto ao sentido da vida, quanto ao sentido da jornada daquela comunidade.

Dark contempla a grandeza do tempo, como somos controlados pelas nossas tentações até nos tornarmos numa sombra do nosso passado, encapsulada numa memória que o presente não previu e o futuro destruiu.

Se gostaram, deixem feedback :)

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