Hannibal — Uma epopeia à morte
Como é estar dentro de um pesadelo alucinante
Do perverso ao belo, do excêntrico ao horrível, Hannibal derruba todas as expetativas de um espetador ingénuo, pouco ciente do que o espera. Nesta série, o vilão pode torna-se o herói; a morte pode ser transformada numa banalidade, ou talvez ser reciclada num peça de arte; há um assassino em série ao virar de cada esquina; e o que é certo, o que é bom, o que é moralmente aceitável são meras superficialidades, meras construções que escondem a verdadeira natureza humana, fonte de desejos caprichosos e instintos animalescos.
O universo Hannibal não nos é novo. Desde a publicação do bestseller “Dragão Vermelho, de Thomas Harris, em 1981, surgiram várias adaptações no cinema. Seguindo a cronologia da história, os títulos lançados foram “Hannibal — A Origem do Mal” (2007), “Dragão Vermelho” (2002), “Caçador de Assassinos” (1986), “O Silêncio dos Inocentes” (1991) e “Hannibal” (2001). Ver os filmes ajudou-me a perceber algumas das referências na série.
Enredo da série
Em Hannibal há uma abundância de artificialidade e teatralidade, que culmina na terceira e última temporada. A primeira, que foi para o ar em 2013, dá-nos a ideia de ser outra série sequencial de crimes. Já a segunda leva-nos para terrenos mais instáveis e vemo-nos, de repente, a assistir a uma guerra psicológica entre as duas personagens principais da série, Will e Hannibal.
Will Graham, um professor universitário, diagnosticado com síndrome de asperger e autismo, é chamado a locais de crimes para interpretar assassinatos. A sua forma diferente de pensar permite-lhe simpatizar com qualquer pessoa, o que se revela útil quando ele veste a pele dos assassinos e percebe as suas motivações e impulsos, tornando-se fácil antecipar os seus padrões e apanhá-los. Mas há um senão, que Jack Crawford, agente encarregado da Unidade de Ciência Comportamental do FBI, espera resolver ao consultar o psiquiatra Hannibal Lecter: Will tem dificuldades em lidar com todo o stress emocional que aquele trabalho envolve. É assim que conhecemos o famoso Doutor Lecter.
Durante grande parte da série, estive enganada ao acreditar que Will tratava-se da personagem principal e Hannibal era o vilão que deveria ser derrotado. No entanto, como disse no início, não há heróis nem vilões nesta história. Hannibal não pode ser descrito apenas como um simples psicopata que mata pessoas e as come, dando-as também a comer aos convidados que recebe em sua casa. De facto, ele é descrito na série como uma ser quase superior, frequentemente associado a Deus, como aquele que desafia O Todo Poderoso.
Há um toque de sofisticação nesta personagem, que muito se deve à brilhante interpretação de Mads Mikkelsen. Ao contrário de Anthony Hopkins, o ator que interpreta Hannibal em “Silêncio dos Inocentes” e recebeu um óscar por essa prestação, Mikkelson dá-nos um Hannibal mais charmoso, menos aterrador, um artista que toca cravo, aprecia Dante e desenha. O seu olhar é vazio, desprovido de emoções e, ao mesmo tempo confiante, como se estivesse a zombar-nos, como se soubesse de algo que nós não soubéssemos.
O teatro da morte
Cenas explícitas, onde vemos cadáveres tratados como materiais de arte ou tinta em óleo, dispostos em palete, costurados em afrescos, torcidos e exibidos em totens, pescoços transformados em violoncelos, pele esticada em asas, órgãos substituídos por flores, tornam-se bastantes comuns. A morte e o terror elevados a arte. Em cada cadáver mutilado há uma mensagem, um desejo oculto do assassino. Os psicopatas são, assim, transformados em artistas e génios.
Com o tempo, habituamo-nos ao sangue e violência brutal exibidos, e passamos, inclusive, a contemplá-los como mera estética. Porque o sangue não é apenas exibido, é projetado e espirrado em arco de forma artística. A violência é retratada como um conto de fadas, em que cada imagem macabra é utilizada como metáfora acerca da mortalidade ou da perda, utilizada como mensagens românticas, como símbolos e mitos, referências a pinturas e a obras literárias como Dante, Frankenstine e a Bíblia. Por isso, é preciso estarmos atentos aos significados ocultos em cada cena. Uma chávena que se parte e depois se junta como um crânio pode refletir o desejo de um homem em luto de poder voltar atrás no tempo. Outras cenas onde vemos lágrimas serem agitadas em Martinis ou abdómens cortados com uma lâmina, simbolizando uma penetração sexual, também não são simples acasos.
Bryan Fuller desenvolveu a série de modo a que tudo parecesse exagerado, distorcido e reenquadrado, confundindo-se o figurativo e o real. Este embelezamento do horrível tem claras influência dos trabalhos de Stanley Kubrick e David Lynch.
Hannigram (Hannibal + Graham)
A relação entre Hannibal e Will é um dos pontos principais da história. Uma relação romantizada e pouco saudável entre dois seres em tudo opostos — um sente como sua a dor dos outros, o outro despreza a humanidade — mas que se atraem. Hannibal fica fascinado com as habilidades emocionais de Will para se colocar no lugar dos outros. Talvez ele se sinta solitário, como alguém que revelado aos olhos do público seria abominado e descrito como um monstro, por isso ele acredita poder manipular Will a compreendê-lo e a simpatizar com ele, até mesmo a tornar-se como ele. O seu objetivo final é mesmo esse — transformar o detetive Graham num seu semelhante e dar-lhe a provar um pouco do seu mundo.
O charme de Hannibal é irresistível. Ele consegue seduzir facilmente as suas presas. Os seus gostos exóticos e requintados impressionam a todos. Descrevê-lo como um canibal pode ser um erro, porque ele não considera que come seres semelhantes a si mesmo. Para ele, os humanos que mata e transforma em pratos elaborados não passam de porcos. Mas há certos humanos que ele gosta de manter por perto. Além de Graham, é também o caso da sua psiquiatra, Dr. Bedelia Du Maurier. Ele gosta de pessoas educadas e refinadas, por isso, escolhe comer os mal-educados. Como ele mesmo diz: “Eu como o rude”. Considera que é um favor que faz à sociedade.
Já Will, é uma personagem um pouco mais contraditória. Será que está do lado do Diabo (figurativamente representado por Hannibal) ou de Deus (o justiceiro e poderoso Jack Crawford)? Em algumas alturas, ele é mencionado como o cordeiro de Deus que é sacrificado em prol do bem. Em outras, a sua máscara como fiel amigo e seguidor de Hannibal confunde-se com a sua verdadeira identidade. Porém, até o próprio Will não tem certeza de quem é. A certa altura ele ouve a voz de Hannibal na sua mente como se fosse a sua própria, vendo-o em visões, e compreende de tal forma a sua forma de pensar e agir, que sente como se estivessem permanentemente unidos. Ele está quebrado por dentro e Hannibal percebe isso como uma oportunidade para moldá-lo à sua visão. A relação entre estes dois homens ultrapassa as barreiras heterossexuais, pelo menos no campo psicológico, e as interações entre eles, que beiram a luxúria e o ódio, tornam-se antecipadas.
Não é para estômagos fracos
Os pratos confecionados na série deixam-nos com água na boca. E não fosse o pequeno detalhe de serem (supostamente) à base de carne humana, estaria tudo bem e não nos sentiríamos culpados pela gula que sentimos. A equipa composta por Janice Poon (estilista de comida) e José Andrés (Chef conselheiro) estão por trás dos arranjos dos pratos. Poon criou um blogue (Feeding Hannibal) relatando os esforços colocados na apresentação e confeção dos pratos, onde cada ingrediente é usado com o propósito de espoletar certos gatilhos e sensações.
Esta não é uma série que possa ser recomenda a qualquer pessoa. Nem todos apreciam ver a glamorização de assassinos e psicopatas. Facto é que Hannibal tem excelentes críticas. Quem diria que uma série com tantas falas, uma perspetiva tão cinemática e que aborda uma história já conhecida pelo público, teria tanto sucesso? A mistura de humor negro, personagens carismáticas e um elenco de luxo (Gillian Anderson, Laurence Fishburn, Richard Armitage, Eddie Izzard e Zachary Quinto são alguns dos nomes que aparecem na série) faz-nos ficar pregados aos 39 episódios.
Ao princípio, ficamos perturbados, especialmente naqueles momentos em que somos acompanhados pela trilha sonora de Brian Reitzell que bate numa cacofonia de precursão industrial desconcertante, mas depois da inquietação vem a apreciação: os assassinatos são belos.
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