The Queen’s Gambit — Na vida ganha-se ou perde-se

Não só sobre campeonatos de xadrez, a série retrata a vulnerabilidade num desporto predominantemente masculino.

Adriana Silva
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6 min readMar 21, 2021

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A nova minissérie da Netflix, The Queen’s Gambit ou Gambito da Dama, estreou em outubro e anda pelas bocas do mundo. O que é engraçado dada a temática da série: competições de Xadrez na década de 50, em meio a traumas de infância, adição de drogas e dramas de crescimento.

Basicamente, esta é uma série sobre desporto. Não soa a algo muito excitante, ainda mais para aqueles que não percebem minimamente nada sobre Xadrez (como acontece ser o meu caso) e, no entanto, é impossível despregarmos os olhos ao ecrã, e sentirmo-nos menos entusiasmados durante as cenas dos jogos do que se estivéssemos a assistir à seleção portuguesa nos mundiais.

Alguns concordam que há razão para todo esse histerismo, outros nem tanto. Certo é que mesmo antes de eu ver a série, já voavam das lojas tabuleiros de Xadrez. Uma amiga minha contou-me que depois de assistir à minissérie passou a dedicar mais tempo a esta atividade, jogando com um renovado ânimo.

As estimativas indicam que houve um aumento dos jogos online de Xadrez e da venda de tabuleiros de xadrez.

Enredo

A história é uma adaptação do livro com o mesmo nome, de Walter Travis, publicado em 1983. Acompanha a jornada de crescimento e evolução de Elizabeth Harmon, desde o momento em que se torna órfã, à sua ascensão como uma jogadora de topo de Xadrez.

O título da série: “Gambito de Dama” faz alusão a uma jogada de Xadrez em que se sacrifica uma de suas peças para conseguir vantagens posteriormente no jogo. Mas a expressão “Gambito” também pode significar uma tática ou manobra para vencer o adversário, e a expressão “Rainha” é o nome informal que damos à peça dama, a mais poderosa do tabuleiro de Xadrez. As interpretações quanto ao nome da obra também podem ser aplicadas àprópria vida da protagonista.

A Rainha Branca

Apesar da mudança de cenários ao longo dos episódios, assim como a troca das atrizes protagonistas — de uma Elizabeth pré-adolescente para uma Elizabeth mais velha — nós ganhamos uma grande afinidade pela primeira parte da série.

Assistimos à ida de Beth para o orfanato, à sua descoberta do mundo do Xadrez, um escape à perda e ao ambiente restritivo em que passa a conviver, e ao início da sua dependência pelas drogas. Pelos vistos, nos anos 50 era comum dar calmantes e outras vitaminas às crianças nos orfanatos, para as manter calmas — mais em modo “zombie”. É lá que conhece o Sr. Shaibel, o porteiro do orfanato, que se esconde na cave a jogar Xadrez. Ela fica curiosa e aprende a jogar sozinha, projetando no teto, depois de tomar a pílula verde que lhe dão no orfanato — símbolo da sua adição — sombras das peças e do tabuleiro.

O fio condutor da série pode ser o Xadrez, mas o destaque vai para o amadurecimento desta personagem. Uma personagem com uma bagagem pesada, que vai acumulado traumas, perdas, e até bullying, crescendo para se tornar numa mulher dominante e glamorosa, sempre rodeada por homens e destacando-se em meio a eles. Essa combinação gera uma personagem complexa que vive na contradição entre ser a melhor do mundo ao mesmo tempo que cultiva comportamentos e vícios autodestrutivos para o seu sucesso e vida pessoal.

Mas o mais interessante é que vamos conhecendo melhor esta personagem ao longo da série, enquanto nos são reveladas memórias de Beth com a sua mãe ainda viva. E assim vamos montando um quebra-cabeça que nos ajuda a entender o que está por trás da personalidade singular desta jovem prodígio.

Não é sobre jogar Xadrez

Por isso, o objetivo da história tem menos a ver com a nossa protagonista vencer implacavelmente oponentes mais maduros e experientes, e tem mais a ver com o seu desenvolvimento pessoal.

Durante as competições, é frequente serem ocultadas jogadas. Sabemos quem ganhou através das expressões faciais das personagens, uma estratégia arrojada que torna ainda mais emocionantes as sequências de Xadrez. O que não significa que as personagens estejam a mover as peças aleatoriamente. Na verdade, há toda uma equipa de grandes profissionais por trás da elaboração das partidas, e muitas jogadas são, inclusive, baseadas em torneios que ficaram para a história. Mas todos esses aspetos técnicos são deixados para segundo plano. O nosso foco é voltado para o sentimento inscrito na cena. Mesmo sem se saber jogar Xadrez, podemos achar certas jogadas divertidas, excitantes e, até mesmo, comoventes.

O mais incrível da série é podermos assistir à evolução de Beth, enquanto deixa para trás uma adolescente desajeitada e traumatizada, tornando-se em alguém confiante e imponente.

A mensagem

A vida é um jogo de sobrevivência. É essa a mensagem figurada nas competições representadas ao longo da serie. Beth vê o tabuleiro de Xadrez como a sua casa, onde se sente confortável, porque tudo é previsível e fácil de dominar. Ela não hesita, desde o primeiro momento, em tornar-se uma jogadora profissional. Porque está em causa o facto de ela precisar mostrar ao mundo, e sobretudo a si própria, que é capaz. Ela precisa da sensação de controlo que o Xadrez lhe dá. A questão é que não podemos controlar tudo. E é isso que Beth percebe enquanto enfrenta adversários cada vez mais fortes.

No entanto, podemo-nos preparar para as adversidades. Normalmente, o Xadrez é um jogo profundamente intelectual e solitária, mas aqui o trabalho em equipa é encorajado como um elemento que compensa. Não basta ser-se o melhor. Ganhar implica estudo, esforço e dedicação.

Os colegas que Beth conhece nos campeonatos de Xadrez tornam-se num grande pilar na sua vida.

Vêmos Beth aprender a perder e a levantar-se de seguida. Vêmos Beth ser arrastada pelo vício que ela outrora usava para se sentir segura de si mesmo e no controlo, e que agora é a causa da perda desse mesmo controlo. Em última instância, a mensagem da história é que a verdadeira vitória é conseguida sem atalhos.

Notas finais

Além do enredo cativante, há outras razões para assistir “The Queen’s Gambit”, como a atuação incrível de Anya Taylor (e do resto do elenco, já agora) que nos oferece diferentes facetas de Harmony, uma mistura de vaidade, com vulnerabilidade, arrogância, ironia e glamour.

Também a ambientação da série contribui para nos transportar para as décadas de 1950 e 1960, o auge da guerra fria, explorando com incrível detalhe cenários como os Estados Unidos, México, França e União Soviética, e fazendo escolhas inteligentes de guarda-roupa, que representam o estado emocional das personagens. O melhor de tudo é se pode ver a série de uma assentada só. São 7 episódios com princípio, meio e fim, que exploram com suficiente profundidade a história sem se arrastarem.

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