Rodrigo Queiroz
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10 min readDec 26, 2020

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A Casa de Vidro e o dilema moderno de Lina Bo Bardi

Quando pensamos nos projetos residenciais de autoria da arquiteta italiana Lina Bo Bardi, a imagem imediata que nos vem à mente é a de sua residência particular localizada em São Paulo (1951), mais precisamente a imagem de seu bloco social envidraçado, capturado em mirada de baixo para cima, ponto de vista que dramatiza ainda mais a contrastante relação entre aquele leve e suspenso objeto ortogonal e o perfil natural do terreno, em inclinação íngreme.

Essa imagem clássica, que ilustra praticamente todas as publicações sobre a arquiteta, desde a conclusão da obra há quase 64 anos, e que inclusive justifica a conhecida alcunha “Casa de vidro”, expõe a inequívoca condição moderna deste projeto, ou de, pelo menos, sua parte revelada pelo ângulo da fotografia: volumetria transparente e prismática, suspensa sobre finos pilares recuados sob a projeção da laje de piso e, consequentemente, soltos no interior do volume elevado.

Residência Pietro Maria Bardi e Lina Bo Bardi — “Casa de vidro” — São Paulo (1951)

A gramática espacial interior da Casa de vidro, aparentemente associada à vertente construtiva da arquitetura moderna, aproxima a configuração daquele ambiente doméstico a outros interiores também assinados pela arquiteta italiana, principalmente os projetos expositivos que antecederam o projeto de sua residência, como a expografia da primeira sede do Museu de Arte de São Paulo (1947/1950), que, antes de possuir o edifício próprio, construído na Avenida Paulista (1958/1967), também projetado por Lina Bo, ocupou dois andares inteiros do Edifício dos Diários Associados, no centro de São Paulo. Trata-se de uma estrutura espacial configurada pela relação em trama ortogonal entre linhas e planos, em uma organização dispersiva, extensível, aos moldes de obras conhecidas como “Cidade no Espaço” (1925), de Frederick Kiesler, e o “Gabinete da Abstração” (1927), de El Lissitsky, mas, principalmente, parece ecoar projetos de arquitetos italianos como Edoardo Persico[1] e Franco Albini[2].

A notável esbeltez dos pilares metálicos e de seção circular que sustentam e penetram o interior da área social da Casa de Vidro, demarcam e modulam o espaço como uma espécie de versão arquitetônica, permanente, de suas propostas para ambientes expositivos. Imagens de época mostram a existência de estantes de livros com as prateleiras em vidro e a estrutura vertical na forma de tubos metálicos fixados diretamente no piso e no teto, uma mobília feita de planos horizontais transparentes e finas linhas verticais, assim como seus espaços expositivos, continuidade autoral da referência fundamental dos espaços de Edoardo Persico.

Residência Pietro Maria Bardi e Lina Bo Bardi — “Casa de vidro” — São Paulo (1951) estudo para o espaço social

Contudo, apesar da imagem síntese da residência particular de Lina Bo Bardi ser a fotografia de seu bloco social e transparente, apreendido em ângulo que dramatiza a ortogonalidade da forma, percebemos que a casa não se define como um volume com todas as faces transparentes. Ao contrário, mais da metade do perímetro retangular da planta da residência é preenchida por outras superfícies.

Contíguos ao bloco social e transparente, encontram-se os outros dois blocos, íntimo e de serviço, separados por um pátio interno. Os dormitórios se abrem para esse vazio interior, ao passo que as janelas das instalações de serviço estão voltadas para a face oposta à principal. Essas aberturas definem-se quase que como prosaicas janelas com venezianas sobre a parede branca, na aparência mais elementar daquilo que podemos entender como sendo uma janela.

A conhecida Casa de vidro expõe, pela primeira vez na obra de Lina Bo Bardi, a presença de um raciocínio que transita com particular desenvoltura entre a radicalidade positiva moderna e a volumetria tradicional, compósita, definida pela forma e pela disposição das aberturas sobre a superfície opaca. Se na Casa de vidro essa aproximação ocorre pela planta, como blocos separados por um pátio, já no projeto do Museu de Arte de São Paulo, essa relação entre transparência e opacidade se dá pelo corte, com o bloco expositivo principal, um volume transparente[3] e suspenso, que assim como a “Casa de vidro”, detém em si a imagem síntese do projeto, e um outro volume parcialmente opaco, em concreto aparente, praticamente invisível para quem está na Avenida Paulista, voltado para o fundo que se abre para a Avenida Nove de Julho.

Essa volumetria sólida, perfurada e com um teor empírico e vernacular, localizada nos bastidores de projetos como a Casa de vidro e o MASP começa, gradativamente, a ganhar uma presença cada vez maior em seus projetos seguintes, nos quais o referencial moderno construtivo e abstrato, representado pela transparência absoluta, praticamente desaparece.

Mesmo nos projetos que sucedem em poucos anos as duas incursões modernas citadas acima, como as casas Valéria Cirell e “Do chame-chame” (demolida), projetos iniciados em 1958[3], percebe-se a clara adoção de uma nova direção, na qual a assepsia construtiva dá lugar a um raciocínio compositivo cumulativo, tátil, definido quase que exclusivamente por uma materialidade rejeitada por aquela forma moderna anterior.

A presença de uma memória material figurativa antecedente ao projeto e que se preserva na obra enquanto imagem, tais como as treliças de madeira, os seixos rolados como revestimento e telhados de cobertura vegetal cumprindo a função de beiral, no caso da residência Valéria Cirell, confere um contraditório mas surpreendente caráter lúdico ao seus projetos, com um senso de humor que transita entre o selvagem e o infantil.

A existência de uma configuração espacial rarefeita entre linhas e planos, pontuada por poucos volumes calculadamente implantados, não identifica apenas a área social da Casa de vidro, mas principalmente as perspectivas dos espaços interiores de projetos como a própria residência da arquiteta, a Casa do Dr. K (1948), o museu em São Vicente (1951) e o Museu de Arte de São Paulo (1957/1968).

Nesses projetos de Lina Bo Bardi, não apenas o espaço interior, mas o espaço em si é, na maioria das vezes, representado em perspectiva cônica, com um único ponto de fuga central, definido por planos convergentes e planos paralelos ao plano do papel. Soma-se ao uso dessa histórica modalidade de representação da ilusão de profundidade sobre o plano — vigente desde sua invenção, atribuída ao arquiteto italiano Filippo Brunnesleschi (1377/1446) — o artifício da colagem, seja de planos inteiros ou de figuras recortadas.

Por outro lado, a presença da colagem na construção das perspectivas de Lina faz lembrar, inevitavelmente, as conhecidas perspectivas/colagens de Mies van der Rohe, principalmente aquelas que representam os interiores do Pavilhão Alemão na Feira Internacional de Barcelona (1929), além das perspectivas de alguns de seus projetos norte-americanos[4]. Contudo, Mies ameniza a histórica sensação de profundidade ilusionista, atribuída aos planos convergentes, ao dar ênfase apenas aos planos paralelos ao plano do papel, vistos em verdadeira grandeza, em precisa projeção ortogonal, e, claro, são essas as superfícies que Mies propositalmente cobrirá com suas colagens.

Resor House — Wyoming — USA. Mies van der Rohe (1939). (acervo Museu de Arte Moderna de Nova York)

As colagens de Mies revelam uma instigante hipótese de construção da profundidade, mas sem a ênfase nos planos convergentes típicos da perspectiva linear renascentista. Mies deseja justamente espremer, aplastar a profundidade ilusionista ao diminuir a distância entre o espaço representado e plano físico do suporte propriamente dito.

Em alguns casos, a sensação de profundidade decorre apenas da diferença de dimensão entre os planos paralelos ao plano do papel, representados em projeção ortogonal. Eis um típico procedimento pictórico e gráfico moderno, que intenta justamente aproximar o espaço representado, o plano pictórico e o espaço real, como uma tentativa de unidade moderna entre arte e vida, mesmo que ainda no âmbito da figuração.

Mais do que às colagens de Mies, as conhecidas perspectivas de Lina parecem remeter aos espaços metafísicos do pintor greco-italiano Giorgio De Chirico, com seus planos convergentes em profundidade dramática e suas figuras soltas no espaço, como objetos autônomos, como indivíduos em estado de solidão e silêncio particular.

[1] Apesar do bloco suspenso transparente caracterizar a versão definitiva do projeto para o MASP na Av. Paulista, existem estudos de Lina Bo Bardi que definem o bloco suspenso como um volume opaco e áspero, com suas arestas sutilmente arredondadas e com apenas uma abertura horizontal na sua porção inferior, quase como uma fresta. (FERRAZ, 1993:101)

As figuras soltas e marmóreas, integrantes dos espaços de De Chirico, também povoam os espaços projetados pela arquiteta italiana, como uma espécie de pivô, ponto de fixação, elemento para onde o olho se dirige, impedindo assim a característica dispersão horizontal moderna. Esses espaços representados em perspectiva linear, devidamente demarcada por essas figuras soltas, não permitem que o olho escape em um travelling ininterrupto, mas faz com que o olho tenda, quase que naturalmente, a dirigir-se ao campo de convergência da perspectiva, que culmina no ponto de fuga, via de regra localizado na porção central do desenho/pintura.

Essas figuras monolíticas presentes nos desenhos e os espaços construídos de Lina sinalizam para uma curiosa necessidade de preenchimento e pontuação desses vazios na intenção de demarcar pontos focais de referência, como uma hipótese de ocupação permanente, como podemos observar na rocha em posição vertical disposta na praça localizada sob o vão do MASP. Para Lina, o vazio vem acompanhado de um sistema de composição definido por esses sólidos soltos, definidos como pontos de convergência visual e física.

Além da presença dessas figuras solitárias, o espaço pictórico de De Chirico, assim como o de Lina Bardi, também desdobra a perspectiva linear renascentista. Contudo, para o pintor, a desmontagem dessa profundidade supostamente realista não intenta seu estilhaçamento ou compressão, como no caso cubista, mas, ao contrário, enfatiza essa profundidade convergente, tipicamente italiana. Nas suas pinturas, a intensa dramatização dos planos de convergência decorre da construção de uma perspectiva linear peculiar, com mais de um ponto de fuga, na verdade, um para cada plano convergente. Ou seja, De Chirico desmonta o espaço ilusionista renascentista ao reforçar a condição geométrica que o caracteriza, justamente os planos convergentes constituidores fundamentais da profundidade linear.

Giorgio De Chirico — O Enigma do Dia (1914) óleo s/ tela (185,5 x 139,7cm) (acervo Museu de Arte Moderna de Nova York)

As perspectivas internas de Lina, assim como os interiores construídos à semelhança desses desenhos, revelam justamente a dualidade de uma aparente afirmação moderna, contudo ilustrada a partir da escolha por um código de representação histórico, pré-moderno: a perspectiva linear.

Diferentemente de uma visão exterior, que compreende o edifício como um volume envolvido pelo espaço, a perspectiva de um espaço interior configura-se a partir da definição de seus planos de fechamento (paredes, piso e teto), ou seja, dos próprios limites do espaço. Nos desenhos de Lina, o uso da perspectiva linear com proeminentes planos de convergência parece manter incorporado à representação da arquitetura moderna uma estrutura visual e gráfica tipicamente à italiana, que intenta reproduzir no plano a ilusão de profundidade do espaço real.

Se comparada à codificação geométrica adotada por arquitetos modernos brasileiros, como Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha, a composição espacial dos desenhos de Lina, de fato, assume uma condição peculiar, pois ainda se revela como uma tentativa de representação literal da realidade.

Museu de São Vicente (1951) Lina Bo Bardi. Perspectiva do espaço expositivo

Reconhecidos pela elevação e pelo corte como instrumentos de linguagem gráfica de seus projetos, os desenhos de Niemeyer e Mendes da Rocha resistem justamente à submissão ao simulacro do real, mantendo-se assim na plena condição de projeto, ou seja, o desenho não se define pela “representação” de uma sensação espacial ótica, mas, ao contrário, codifica-se a partir de uma linguagem que planifica a profundidade: a projeção ortogonal. Trata-se de uma maneira de não sujeitar o desenho a um código de representação do espaço real, no caso, a perspectiva, e desse modo, livrá-lo de toda e qualquer aproximação com a ilustração e com a narrativa.

O teor narrativo é uma característica intrínseca dos desenhos de Lina, conhecidos por retratarem uma cena particular, que, em alguns casos, chama mais a atenção que o projeto em si, como uma circunstância pontuada por personagens e elementos que povoam esses espaços narrados sobre o papel. Nesses desenhos, a representação do projeto é, antes de tudo, a ilustração de uma experiência específica, nada universal, sendo assim, também nada moderna, como o despretensioso retrato de um momento circunstancial, que, se comparado à afirmação inaugural dos desenhos de Niemeyer e Mendes da Rocha, podem até passar a falsa impressão de ingenuidade.

A partir de tais aproximações, podemos perceber a existência de um espaço moderno matricial na obra de Lina Bo Bardi, recorrente em seus projetos: um ambiente descompartimentado, vazio, demarcado por uma grelha vertical esgarçada e pontuado por objetos cuja natureza formal, às vezes curvilínea e volumétrica, opõem-se, porém complementarmente, à ortogonalidade vazia e extensível do espaço de sua arquitetura.

Em um ambiente marcado por procedimentos projetuais distintos porém parentais, como a linha moderna, mas gestual, humana, de Niemeyer e a “escola paulista”, protagonizada por Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha, a obra de Lina Bo Bardi parece tentar preencher os pontos cegos da ética formal de um projeto em processo de crise. Na contramão dessas correntes hegemônicas, suas obras refletem sobre a possibilidade de conciliação entre a universalidade moderna e a singularidade do indivíduo. A resposta sobre a condição da arquitetura no Brasil, expressa em seus projetos, decorre de um sentido de liberdade que só se constitui a partir do distanciamento proveniente de um olhar estrangeiro.

[1] Loja Parker, Milão, 1934

[2] Exposição de il Scipione, Galeria de Brera, Milão, 1941.

[3] Projetos praticamente contemporâneos ao projeto do MASP e que junto com a Casa de vidro são as três únicas casas construídas de Lina Bo Bardi.

[4] Perspectivas pertencentes ao acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York.

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Rodrigo Queiroz
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Architect and Associated Professor of Design Departament to the School of Architecture and Urbanism of the University of Sao Paulo