Oscar Niemeyer: a “invenção” entre Le Corbusier e Lucio Costa

Rodrigo Queiroz
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4 min readNov 13, 2020

Em sua primeira viagem ao continente americano, Le Corbusier permanece, na América do Sul, de 03 de outubro a 10 de dezembro de 1929, realizando conferências e projetos nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Buenos Aires e Montevidéu. Passados três meses do retorno de Le Corbusier à Europa, Oscar Niemeyer ingressa como aluno da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (ENBA), em março de 1930, aos 22 anos de idade, formando-se arquiteto em 1934, dois anos antes da segunda visita de Le Corbusier à cidade do Rio de Janeiro. O arquiteto franco-suíço se estabelece na então Capital Federal, de 13 de julho a 15 de agosto de 1936. Nessa ocasião, além de proferir seis conferências, desenvolve os projetos do edifício do Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP) e do campus da Universidade do Brasil, em parceria com uma equipe composta por jovens arquitetos modernos, entre eles Lucio Costa, Oscar Niemeyer e Affonso Eduardo Reidy.

Como arquiteto mais jovem da equipe, com menos de dois anos de formado, Niemeyer é designado para acompanhar o “mestre” Le Corbusier, na condição de assistente, durante sua passagem pelo Rio de Janeiro. Nessa ocasião, Niemeyer elabora as perspectivas de uma das propostas de Le Corbusier para o MESP, que, segundo o arquiteto, não deveria situar-se em meio ao tecido urbano da cidade tradicional, mas defronte ao mar, no mesmo alinhamento da quilométrica e ondulante edificação proposta por ele mesmo, em sua primeira visita ao Rio de Janeiro, ocorrida sete anos antes, em 1929.

Em 1933, ainda como estudante do 4º ano, Niemeyer decide trabalhar no escritório de Lucio Costa, ex-diretor da ENBA. É nesse mesmo ano que Lucio inicia a elaboração do texto “Razões da nova arquitetura”, de fundamental importância para a afirmação do “moderno” em território nacional, em um momento de embate entre acadêmicos/conservadores e modernos/progressistas, dentro da própria ENBA. Lucio Costa não apenas sai em defesa da arquitetura moderna, como especula algumas relações possíveis entre a arquitetura moderna e a colonial, a fim de promover nexos capazes de estabelecer certa identidade entre a linguagem moderna de vertente corbusieriana e a colonial de matriz popular, reconhecida pela simplicidade e despojamento, tanto da forma arquitetônica, como da construção, pela ausência de ornamentos e por sua adaptação aos trópicos, diagnosticada pela utilização de elementos vazados e grandes beirais.

A formação de Niemeyer como arquiteto pode ser compreendida como a conjunção de dois referenciais bem definidos, cuja síntese resulta naquilo que ficou conhecido como “arquitetura moderna brasileira”: o “moderno” postulado por Le Corbusier e o “brasileiro” definido por Lucio Costa, a partir da aproximação proposta por ele entre a “nova arquitetura” e nossa tradição construtiva colonial.

Entretanto é evidente que a obra de Niemeyer não pode ser reduzida a essa simples equação. Niemeyer não manipula essa dupla influência como objeto de mera interpretação, ao contrário, o arquiteto carioca emancipa-se ao seu referencial, justamente por transgredir o cerne das características que definem a expressão arquitetônica e o raciocínio de ambos os “mestres”.

Será essa inversão, tanto dos estilemas puristas presentes nos projetos de Le Corbusier realizados na década de 1920, como do aspecto quase compositivo dado por Lucio Costa na utilização dos elementos coloniais no projeto moderno, que legitimará a obra de Niemeyer, como uma operação que deflagra o raciocínio embrionário daquilo que o próprio arquiteto chama de “invenção”.

Lucio Costa desenha a janela como a subtração de parte da superfície, enquanto Niemeyer expande a janela ao limite da dimensão da forma, transformando a abertura na própria superfície integral da arquitetura, restando como “matéria” apenas a espessura que define o contorno da forma, uma linha em movimento, que aproxima a construção do próprio desenho do arquiteto. Eis um admirável esforço de transformar a construção, algo matérico e volumétrico, em um simples gesto, que, ou pousa em pontos mínimos de contato com o chão, ou desenha um movimento do próprio horizonte (lembremo-nos dos palácios de Brasília).

Oscar Niemeyer — Palácio do Itamaraty — Brasília, 1962

Os projetos que sucedem a experiência do MESP, como no Pavilhão do Brasil na Feira Internacional de Nova York (1938/1939), realizado em parceria com o próprio Lucio Costa, e no conjunto arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte (1940/1943), registram a paulatina emancipação de Niemeyer em relação a esse referencial.

Nesses projetos, Niemeyer exterioriza e promove à condição de edifício aquelas formas que Le Corbusier preserva como gesto recluso a um esquema compositivo purista, em que as formas encurvadas, presentes em lavabos, escadas ou caixas d’água, preservam-se interiores e alinhadas a um perímetro ortogonal. Vista em planta, essa organização gráfica dialoga com as pinturas de Le Corbusier, em que o contorno regular da forma — seja a moldura da pintura, ou o limite exterior da arquitetura — retém a composição curvilínea.

Em um primeiro momento, a arquitetura de Niemeyer caracteriza-se justamente pelo rompimento do limite purista imposto por Le Corbusier, além da consequente liberação e dilatação daquelas “formas livres” que o arquiteto preserva reclusas, no interior da “forma pura”.

Em uma breve análise dos edifícios que compõem o conjunto da Pampulha — talvez o projeto mais significativo de toda a obra de Niemeyer –, é possível diagnosticar esse procedimento, caracterizado pela crescente autonomia sobre a disciplina plástica de Le Corbusier, desde o Cassino (atual Museu de Arte da Pampulha), primeiro edifício projetado pelo então jovem arquiteto, com 32 anos, para aquele conjunto, onde o momento de ruptura com a moldura purista de Le Corbusier é literal e flagrante, culminando em uma de suas obras primas, a Igreja de São Francisco de Assis. No projeto desse templo, os elementos tributários ao vocabulário corbusieriano, como o piloti de seção circular, a laje plana e a janela horizontal, dão lugar a uma sequência de abóbodas, cuja leitura visual, com mirada em movimento horizontal, parece acompanhar o gesto que originou aquele perfil. Mais uma vez, percebemos, em Niemeyer, esse paradoxal desejo de transformar a realidade em desenho.

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Rodrigo Queiroz
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Architect and Associated Professor of Design Departament to the School of Architecture and Urbanism of the University of Sao Paulo