EU CONFIO QUE NAS MINHAS SOMBRAS SE ENCONTRAM MEUS PRESENTES PRO MUNDO

COMO EU EXPERIMENTEI ESSA CONFIANÇA DURANTE 4 DIAS E 4 NOITES NA FLORESTA SOZINHO, SEM ABRIGO E EM JEJUM.

Fê Chammas
ABRÁÇANA
29 min readOct 10, 2018

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foto: Carolin Dandara

Recentemente, participei de um ritual de passagem pan cultural amplamente conhecido como Busca da Visão, no qual se marca um momento de vida passando 4 dias e 4 noites sozinho e em jejum completo de comida (exceto água) em meio à natureza, sem abrigo e sem entretenimento para ocupar a cabeça como se está acostumado.

Mas antes de entrar nos detalhes desse processo, preciso falar do porquê decidi fazê-lo — basicamente, porque tô encerrando uma série de ciclos na minha vida.

FECHANDO MEU QUARTO SETÊNIO

Completei 27 anos há 3 meses.

Já sentia Saturno voltando desde que completei 26 e minha vida virou de ponta cabeça — ou melhor, eu virei minha vida de ponta cabeça — , mas agora de fato estou encerrando meu quarto setênio de vida. (Os setênios são uma proposta Rudolf Steiner na Antroposofia sobre o desenvolvimento do ser humano na terra acontecer em períodos de sete anos. Leia um pouco mais aqui).

Quando chegamos ao quarto setênio, que vai de 21 a 28 anos, já nos desenvolvemos fisicamente, trabalhamos nossa capacidade de pensar, nos reconhecemos como indivíduos e, finalmente, estamos prontos para trabalhar nossa auto-educação. Nesse período, a tendência é parar para avaliar tudo que herdamos do mundo — família, escola, sociedade — para entender o que segue nos servindo, de que queremos abrir mão e o que queremos buscar por nós mesmos, pois sentimos que está faltando.

Eu não sabia de nada disso na época, mas o fato é que entre 20 e 21 anos de idade comecei a me ligar muitos traços e comportamentos meus que não me agradavam. Machismo, privilégio, desconexão com a terra, ansiedade, medos, conflitos que via no meu caminho.

Foi nesse período que comecei a abrir um mundo propriamente meu de oportunidades, que não vinha da minha família nem de referências próximas que eu tinha.

Esses 7 anos foram marcados por uma forte necessidade de negar minha família, minha história, minhas origens. Bati cabeça, adotei posturas extremistas, fui chato demais muitas vezes (devo desculpas pela intransigência principalmente a meus irmãos, minha mãe e alguns amigos próximos, e sou grato por terem me aguentado hahahaha).

Me sinto muito feliz, hoje, de poder reconhecer, aceitar e valorizar minha origem. Me sinto confortável e pronto para viver à minha maneira próximo à minha história, quebrando a ideia de que ambos são opostos e percebendo que podem ser complementares, me permitindo extrair o que mais me serve entre o que me foi dado desde sempre e o que tenho descoberto por mim mesmo.

ENCERRANDO UM CICLO DE EXPLORAÇÃO

Agora em outubro encerro um ciclo de 16 meses em movimento, nos quais viajei por diferentes lugares do Brasil, passei 2 meses na Índia e 6 meses na Europa.

Pela primeira vez, me permiti quebrar o planejado, depois de ter estudado, trabalho, viajado, vivido como era esperado. Consegui me organizar pra “não ter nada para que voltar” e fazer o que eu quisesse com meu tempo, sem a obrigação de voltar pra casa para cumprir nenhum compromisso.

Ao longo desses meses viajando, me dei conta de que não, não preciso me forçar a estar só e nem acho que seja sustentável em períodos longos. Eu gosto de companhia, gosto da troca e quero estar junto de gente. Mas, para estar com gente, preciso flexibilizar minhas verdades e idealizações de vida.

O que tenho aprendido é que “períodos sozinho” me fazem bem, me trazem de volta para o meu centro e me ajudam a ter clareza das coisas que me fazem bem e, portanto, são chave para essa flexibilização necessária na convivência. E me parece que posso trazer essas práticas ao dia-a-dia, de maneira mais sutil, e explorá-las mais profundamente de tempo em tempo.

Ou seja, a troca com as outras pessoas (leia-se: flexibilização e convivência) e a solitude (leia-se: afirmação da minha maneira de viver) podem conviver, irem complementando-se ao longo do tempo.

ENTRANDO NA VIDA ADULTA

Me sinto finalmente fazendo a transição para a vida adulta.

Apesar de ser financeiramente responsável por mim mesmo faz um tempo, já ter muita barba na cara e idade para tal, não me sentia nem me enxergava como adulto.

Desde que fui morar nos EUA em 2007, com 16 anos, conheci uma sensação de “quero minha mãe” que demorei a conseguir entender. Só depois de anos me dei conta de que não era uma necessidade física de ter minha mãe, mas sim a necessidade do “olhar” dela para me dizer o que as coisas significavam e pra me fazer sentir pertencente, amado, confortável no lugar onde eu estava.

Percebi que minha "mãe" tampouco se materializava somente na minha mãe biológica. Vi que minha mãe era também meus irmãos, minha namorada e até mesmo a empresa em que eu trabalhava.

Depois de 15 meses de rolê meu, me vejo mais confiante, mais seguro comigo mesmo sem os “olhares” das minhas mães, sem o sentimento forte de “quero voltar pra casa”. Tenho encontrado minhas maneiras de fazer as coisas, resolvido meus perrengues sem correr desesperado pro socorro da família, construído meus próprios olhares sobre o mundo e permitido que eles coexistam com os olhares que herdei das minhas mães.

Me sinto, finalmente, mais homem que moleque.

>> olhando pra minha masculinidade

Uma parte muito importante desse processo tem sido o exercício de me abrir pra encarar minha própria masculinidade.

Quando descobri a toxicidade da minha masculinidade, que era (e ainda é!) minha, mas que herdei do meu pai, da minha família e da sociedade como um todo, fiquei assustado, com medo da violência que vi e acabei suprimindo-a por inteiro. E canalizei tudo isso na figura paterna, passando a rejeitar em minha vida tudo que vinha do meu pai, fossem traços violentos e tóxicos, fossem traços responsáveis e comprometidos.

Nesse processo, fui desenvolvendo uma passividade em relação ao que e como queria as coisas na minha vida, me deixando levar pelo fluxo das coisas sem aplicar nelas minha vontade pessoal. Na prática, comecei a sair dessa passividade quando me vi infeliz trabalhando com publicidade no mundo corporativo e decidi que queria mudar.

Mas o processo é loooongo.

Na ZEGG, o Brian, um biólogo inglês de 70 e tantos anos, ao saber que eu tinha 27 anos, me contou sobre o livro João de Ferro, de Robert Bly, que fala do mito milenar de um Homem Selvagem que traz em si as potências da energia masculina.

Meu ponto em citar essa passagem é porque o livro fala da importância de processos de iniciação liderados por pessoas mais experientes e de rituais de passagem para marcar com clareza os momentos da vida, coisas que foram quase que completamente perdidas na nossa sociedade moderna e que afeta profundamente, entre outras coisas, o desenvolvimento dos homens de hoje em dia.

BUSCA DA VISÃO

Foi nesse contexto, com tudo isso acontecendo, que li sobre a Iniciação da Terra, que aconteceria na EcoDharma, uma Ecovila nos Pirineus, na Catalunha, que “oferece cursos, eventos e retiros que apoiam a realização do nosso potencial humano e o desenvolvimento de uma consciência ecológica que honre nosso pertencimento mútuo na rede da vida — a partir das visões do Dharma Budista e dos paradigmas ecológicos emergentes do nosso tempo”.

Vista da comunidade

A Iniciação da Terra é o nome do curso que suporta o processo de Busca da Visão e está dividida nas três fases clássicas do ritual de passagem: preparação e rompimento, quando se trabalha a intenção individual e o compromisso ao fazer o ritual de passagem; limiar, momento em que cada pessoa passa 4 dias e 4 noites em jejum sozinho na floresta, como mínimo de estrutura possível, para que a intenção possa ser revelada e desenrolada através do espelho da natureza; e incorporação, momento em que exploramos a experiência vivida como intuito de trazer sentido aos presentes recebidos e compreendendo suas implicações em nossas vidas e contextos.

Esse é um ritual pan cultural, presente em muitas culturas tradicionais de diversos lugares do planeta e era praticado principalmente no momento em que adolescentes entravam oficialmente na vida adulta. Os anciãos e iniciadores da comunidade mandavam a então adolescente para fora da comunidade, onde ela deveria passar 4 dias e 4 noites a sós, em um ambiente natural, sem alimento e sem abrigo, para se conectar com esse momento tão importante da vida onde a menina ou o menino está morrendo para que a mulher ou o homem se manifestem em sua totalidade.

Ao voltar, a pessoa era recebida pela comunidade já como adulta, era alimentada, escutava histórias de sues anciãos a que até então não haviam tido acesso e tinha suporte para incorporar esse novo momento de vida em que ela passa a se responsabilizar também por sua comunidade, expandindo o foco de si mesma para o coletivo.

Quando li sobre o conteúdo do curso e ver que ele aconteceria quando eu estaria na Espanha, fui tomado por uma empolgação gigante — era exatamente o que precisava nesse momento. Mas logo me veio uma reflexão sobre se eu realmente queria passar por isso, se eu estava pronto, ou se estava repetindo meus padrões de “querer me isolar”, de me forçar a passar por situações de solidão e afastamento.

Me lembrei da primeira vez que me propus a ficar 4 dias em silêncio num monastério na Tailândia e, quando cheguei lá, me liguei que eu não tinha ideia da proposta em que tinha me jogado, que tinha ido por mera empolgação e me deparei com pensamentos depressivos, uma tristeza extremamente profunda dentro de mim e sombras que eu não esperava encontrar.

Tomei tempo para avaliar a proposta.

Me dei conta de que estava mais consciente sobre a proposta e que, ao longo dos últimos anos, já pude sentir a força desses períodos de abstração social em meu corpo e que valorizo isso de fato. Tava pronto para encarar meu medo de estar só, pronto pra olhar pras minhas sombras e acolhê-las como uma parte importante de mim mesmo.

E, na descrição do curso, li uma frase que me chamou muito a atenção e me ajudou a tomar minha decisão:

“Não vamos para o deserto para fugir das pessoas, mas para aprender como encontrá-las: não as deixamos para não ter mais nada a ver com elas, mas para encontrar a maneira de fazê-las o maior bem possível” — Thomas Merton

Então tava decidido: queria fazer o curso!

Dia 22 de outubro, então, lá fui eu pros Pirineus ver o que saía dessa experiência.

PREPARAÇÃO E ROMPIMENTO

Chegamos no sábado à EcoDharma e os primeiros dois dias de curso, domingo e segunda, foram dedicados ao trabalho de nossa intenção ao participar desse ritual.

Os facilitadores, Rupert e Diana, abordaram um pouco da origem da Busca da Visão e falaram sobre a importância de ritualizar passagens, processos que ajudam nossa psique a compreender em um nível mais profundo a direção que estamos deliberadamente escolhendo seguir. Falaram sobre compromisso em abrir mão de algo, deixar que algo que já não nos serve morra, para que o novo possa nascer. Abordaram a importância do sacrifício de conforto, abrigo, alimento e controle, para trazer mais clareza ao que é essencial e ao que está vivo em nós.

Eles também nos ofereceram a teoria da Roda das Quatro Direções, conceito da Ecopsicologia, como suporte para esse processo.

A roda, basicamente, explora o desenvolvimento da vida através das características, simbologias e implicâncias das quatro direções existentes — leste, sul, oeste e norte.

A simbologia da roda é mais ou menos isso.

Cada pessoa tinha 40 minutos para expor sua intenção e receber espelhos dos facilitadores e do grupo que estava participando do curso.

O que me trazia até ali?
O que eu queria marcar em minha vida com esse ritual?
Porque achava que isso era importante?

Eu tinha minhas intenções relativamente claras e fui o primeiro a expô-las.

Acima de tudo, eu queria marcar minha transição de menino para homem. Queria agradecer pelos aprendizados recentes e marcar esse momento deliberadamente.

Pra mim, isso significa buscar abraçar meu ser por completo, com todos os traços que me agradam e todos aqueles dos quais tenho medo, que evito e escondo. E esse é um desafio gigante pra mim, que tenho como histórico uma preocupação excessiva com como estou sendo percebido, pouca tolerância a meus próprios erros e tendência a me punir fortemente por minhas falhas. Me abraçar por completo também significa conviver em harmonia com meu passado, sem precisar “me distanciar” dele para viver à minha maneira.

Através dos espelhos que recebi, ficou claro pra mim que tenho medo de ser percebido pelos outros e, acima de tudo, por mim mesmo, como um ser humano real em que convivem forças e fraquezas, acertos e erros, beleza e feiura, compaixão e violência. E que essa característica também se conectava com uma outra intenção que tinha, de aceitar os outros, principalmente as pessoas mais próximas a mim, com todas suas falhas e sombras, também.

E em complemento a essas intenções, também queria marcar o momento de vida em que passo a atuar ativamente na construção do mundo em que acredito, dedicando minhas horas, minha energia e meu suor pra isso — e não apenas estudando e me mudando, como tenho feito até então.

O Rupert falou sobre a busca por reconexão com nossas instruções originais.
Assim como uma semente de manga conhece suas instruções originais de brotar, crescer buscando a luz do sol, bebendo água e absorvendo nutrientes da terra, e produzir mangas, sombra e novas sementes como seus presentes para o mundo (entre muitos outros), nós, seres humanos, também podemos acessar nossas instruções originais e nos conectar com o que sabemos que precisamos fazer para produzir e oferecer nossos presentes para o mundo.

Ele falou também sobre a ideia do Jung de que é em nossas feridas e em nossas sombras que moram os presentes que podemos oferecer e citou sua ideia de que “não diminuímos nossas sombras ao jogar-lhes luz, mas sim ao abraçá-las”.

Tudo isso, para mim, estava diretamente relacionado a ser homem e ficou claro no papo que meu desafio mora mesmo na relação com as sombras.

Eu já tenho olhado pras minhas.
Sei que estou disposto a aceitá-las, sem fugir, sem escondê-las, e me sinto pronto pra aprender com elas e materializar meus presentes a oferecer.

Daí veio a intenção com que queria entrar no ritual:

“Eu confio que nas minhas sombras se encontram meus presentes para o mundo.”

LIMIAR

Na terça-feira, terceiro dia de curso, chegou o momento de irmos até o acampamento base, que ficava em um lugar do vale onde estávamos a que o acesso só era possível a pé.

Toda nossa estrutura de água (14 litros de água pra cada um dos 12 participantes mais toda água necessária para o acampamento base), comida para os facilitadores que ficariam no acampamento durante nosso ritual, panelas, fogareiro, lonas de proteção da chuva, sleeping bags, etc. vieram de carro até onde dava e, dali, ainda carregamos tudo por mais uns 30 min de caminhada.

Durante a tarde era o momento de sair a procurar o local para fiar ao longo dos quatro dias.

A gente também aprendeu sobre os procedimentos de segurança, principalmente o círculo do amigo, que dois buscadores compartilhavam e adicionavam, em momentos diferentes do dia, uma pedra por dia, para que cuidassem um do outro. Se a pedra estivesse lá, tudo bem. Se não, cheque teu companheiro e avise o acampamento base.

>> buscando meu lugar

Saio pra procurar um lugar pra mim.

Estou certo de que não queria subir na direção das rochas. Quero ficar no meio da floresta de pinheiros, próximo ao fluxo do rio, que estava seco nesse momento.

Começo caminhando pelo curso do rio, buscando por algum espaço plano e sem muitas ulex, planta cheia de espinho, onde poderia dormir e me movimentar com conforto.

Nada perto do rio.

Subo o morro em meio aos pinus, ulex e num chão de muita pedra que deslizava demais. Me arranho, tomo alguns escorregões e muito rápido começo a me questionar “será que tô fazendo isso certo?”.

Logo na busca pelo lugar, antes mesmo do ritual começar, já começam a vir meus padrões.

Sigo na busca.

De repente, outro pensamento: “Será que vou conseguir voltar daqui pro acampamento base? E se eu voltar e pedir direcionamento pros facilitadores?”

Mas eu tô, como tenho estado, comprometido a encontrar meu próprio caminho, ou pelo menos tentar fazê-lo sem pedir socorro na primeira dificuldade.

Desço morro, subo morro, escalo umas pedras e, de repente, avisto um espaço aberto, com chão de pedra e, cerca de 30 metros ao lado, um pedaço de floresta com chão batido de terra onde poderia dormir.

Deito no chão pra ver se era dormível.
Não só é como a vista do céu com os pinheiros fechando o retrato é bem agradável.

Pronto, achei o lugar.

>> agora bora voltar

“Hm, não vale a pena voltar pelo caminho que fiz. Dei muita volta.”

Olho nas rochas ao redor, encontro a direção onde o acampamento base está e penso “vou andar pra lá em linha reta e ver se chego”.

Não só cheguei como o fiz em uns 6 minutos.

Ou seja, caminhei uma hora buscando um lugar e encontrei-o a 6 minutos do acampamento base.

Minha reação imediata é “ah, não, assim não vale, cê tá perto demais do acampamento base”, como se isso deslegitimasse a experiência que podia ter ali, da mesma maneira em que fiz questão de me distanciar da minha “casa” na busca por experiências minhas nos últimos anos.

Percebo aí um convite pra integração das polaridades da minha vida.
Eu posso, sim, ter minha experiência, em um lugar próximo ao acampamento base. Isso não faz dela menos profunda nem menos minha.

Aceito o convite.

>> noite anterior

Sentamos pra comer ao redor da fogueira.

Rupert e Diana falam sobre cerimônias pessoais que poderíamos fazer ali naqueles dias e nos dão sugestões de duas.

Uma delas se chama “leito de morte”, na qual podemos encenar nosso leito de morte e convidar todas as pessoas com quem gostaríamos de nos encontrar, para perdoar e pedir perdão, antes de morrer a parte de nós de que estamos prestes a abrir mão, bem como nos abrir para receber quem quer que quisesse nos encontrar.

Me percebo extremamente emotivo enquanto eles falavam.

Com os olhos cheio de lágrimas, vejo meu pai.
Ele tá sorrindo e me pego dizendo pra mim mesmo que eu o perdoo por todas as violências, emocionais e físicas, que eu tinha sofrido com suas atitudes ao longo da minha criação. Que eu sei que ele fez o melhor que pôde.

Logo vejo também meus irmãos e minha mãe, também com um aspecto leve e uma energia gostosa em torno deles. Também digo que os perdoo e, acima de tudo, me perdoo por tê-los culpado por tudo de minha criação que “não tinha sido como eu queria”.

Fazemos uma rodada para cada um compartilhar seu medo favorito.

Solidão.

Esse é o meu. O que mais me assombra e mais me acompanha ultimamente.

Fazemos outra rodada, compartilhando nossas intenções para que todos e nós mesmos escutássemos.

Enxugo minhas lágrimas e, ainda que com medo da solidão, do tédio e das sombras, afirmo que não quero cair no lugar de vítima e de sofrência com o vazio que tava prestes a vir. Repeti algumas vezes pra mim mesmo:

“Bora aproveitar essa experiência, véio!”

DIA UM

Acordo no acampamento base com o Rupert cantando.
A proposta é manter silêncio enquanto nos arrumávamos para partir.

A lua cheia da noite anterior ainda está no céu, já claro, a oeste, em cima das montanhas.

Quando todos estamos prontos, nos reunimos ao redor do Círculo do Limiar e o Rupert abriu para quem quiser entrar no círculo pra receber a benção de partida e seguir seu rumo.

Ainda emotivo, meus olhos mareiam com as palavras de Rupert e Diana pras pessoas que passaram pelo limiar antes de mim. Sou o terceiro a entrar.

Fecho os olhos.

Peço que toda aquela vida vegetal, mineral, de insetos e tudo que é não-humano me segurasse próximo com carinho, pra que eu não perdesse a conexão com tudo que me dá gás e vontade de viver enquanto estivesse lá.

Abro os olhos.

Vejo o Rupert através dos meus olhos bem úmidos, sorrio em agradecimento, me viro e parto.

É quarta de manhã e eu só voltaria ali no amanhecer de domingo. Até lá, não verei nem conversarei com nenhum ser humano e não vou comer nada além da pitada de sal diária pra recarregar os sais perdidos na urina.

Chego no acampamento.
Faz muito frio.

Decido começar esse processo praticando asanas de yoga e pranayama.
Faço uma prática lentíssima e, ao final, o sol já está mais alto e já aquece bem o dia.

Acho um espaço de sol entre as árvores onde vou me esquentar.
Dali, avisto um pinus jovem que estava caído e morto.

>> amassador também é galho

Tiro um dos galhos da árvore e começo a descascá-lo.
Me pergunto se eu conseguiria esculpir algo naquele pedaço de madeira com a faquinha espanhola que tinha ganho do Chris.

Nunca fiz nada do tipo.

Quebro o galho e tiro tudo que posso com mão.
Tô com a ideia de esculpir uma colher.

Começo a raspá-lo com a faca.
O processo é mais difícil do que eu esperava. As lascas saíam de maneira desigual e nem sempre como eu quero.

Descubro maneiras de fazer um desnível na madeira de maneira reta.

Me dou conta de que é mais realista tentar fazer um amassador de madeira — pra fazer uma caipirinha ou pra minha cumbuca matinal de frutas — do que uma colher.

Quanto sol tá no ápice, vou colocar minha primeira pedra no círculo do amigo para avisar o Xavi que eu estou bem.

>> pelado

Tá calor, eu tô sozinho e, na onda de ritualizar as coisas, decido ficar pelado sempre que a temperatura permitir.

Pra me ver sem capas, sem filtros.
Olhar meu pinto sem ser em um momento sexual, me familiarizar com minha pança e meus pelos ao longo das atividades do dia.

Quero me ver inteiro pra aprender a me querer inteiro.

Realmente acredito que tem uma conexão direta entre o corpo e psicológico, e se tô querendo encarar minhas sombras emocionais, também tô afim de olhar pras minhas sombras corporais.

>> pôr do sol

Tô sentado no meu tapete de dormir, esculpindo meu amassador, pelado, quando o sol começa a se pôr.

De repente, ouço vozes ecoarem pelo vale cantando uma música meio indígena, cuja letra eu não entendo direito:

“Core, core
Core, core
Core, Core
Yanamaê (2x)

Yana, Yana, Yana, Yana
Yanamaê (2x)”

Sorrio.

Paro de esculpir um pouco para apreciar aquele momento, que me lembra que não estou sozinho.

Olho pra mim e ao meu redor e penso “caraio, imagina se a galera de casa me visse aqui, assim, agora: pelado, no meio do mato, esculpindo um artefato de madeira e escutando essa música estranha… certeza que iam achar que endoidei”.

Rio.

Ao fim do primeiro dia eu termino de esculpir o amassador.
O dia passou relativamente rápido, eu não me perdi no tédio e nem nas sombras da solidão e dos pensamentos pelos quais tava esperando ser acometido.

Mas, acima de tudo, me sinto bem feliz e satisfeito por ter enxergado naquele galho algo além de uma árvore caída.

Até há pouco, me via num lugar de mimado, que tinha tudo pronto e não realizava a profundidade e o valor do trabalho manual que via ao meu redor e do ato de dedicar energia pra transformar a realidade.

Pra mim, esse é um traço de uma pessoa adulta, que compreende a fundo que tudo que existe no mundo dos humanos vem de algum lugar na natureza, que alguém teve que olhar o recurso, sonhar com uma possibilidade e dedicar sua energia para transformá-lo em algo útil. E que eu, como adulto, tenho não só a capacidade, mas a responsabilidade de transformar as coisas na direção em que acredito.

“Um amassador não é só um amassador. Ele é um galho de árvore somado a alguém que pôde ver um amassador ali. Alguém que aceitou o galho por inteiro, o que servia e o que não servia para o amassador e depois de ver a potência, esse alguém dedicou seu tempo e sua energia para transformar o galho. Portanto, o amassador contém em si todo o galho, mesmo o que não servia. E se não fosse o que não servia, o que servia tampouco seria. Assim é a natureza, assim sou eu, criação desde a morte e brilho desde as sombras.”

DIA DOIS

Dormi estranho.
Acordei muito de noite e parecia não cair no sono profundo. Acho que a lua, que deixou o céu iluminadíssimo durante a noite, deve ter influenciado.

Demoro pra sair do saco de dormir.
Tinha muita neblina no vale, e como eu estava na parte baixa, tava imerso nas nuvens.

Quando crio coragem, vou ver o dissipar da neblina do espaço de pedras que tem ao lado de onde eu dormia.

Eu tava nas nuvens. (foto: Thomas Dönnebrink)

Começo o dia sentindo minha pressão meio baixa e noto meu batimento cardíaco um pouco acelerado. Apesar de estar acostumado com 1 dia de jejum, atrelo essas alterações à falta de comida.

Me mantenho calmo, faço minha prática de yoga e pranayama e como minha pitada diária de sal. Pronto, me sinto leve e novo.

Vou até o círculo do amigo colocar minha pedra. Vejo que o Xavi decorou sua parte com pinhas secas. Retribuo a demonstração de carinho.

>> tédio

Tomo sol, pratico QiGong, mas não tem jeito: o tédio bate forte.

Noto que me vem com alguma frequência o questionamento de estar ou não fazendo o processo de maneira correta. Percebo uma parte minha que acha que tédio é errado, coisa das minhas fraquezas. Que eu deveria estar meditando o tempo todo ali, me conectando profundamente como toda aquela natureza e aquela experiência. Mas, como já conheço minha cabecinha, me ligo que é meu modo idealização entrando em ação, talvez pra eu me sentir melhor, talvez pra eu ter uma história bonita pra contar quando sair.

Decido, então, ficar entediado enquanto o tédio estiver presente e deixar qualquer outra sensação emergir. Assisto às nuvens voarem dum lado pro outro, acompanho um grilo em seu rolê pelo mato — fico muito espantado com como os insetos conseguem ficar parados, imóveis, por tanto tempo, enquanto eu tô aqui, entediado, inquieto, meio ansioso pra alguma coisa acontecer.

Assisto ao vento nas árvores sentado numa pedrona, fico jogando pedra pro alto, monto torres de pedras (duas torres de onze pedras) que deixo lá pra ver se seguram até o dia seguinte.

E é curioso que todo o chororô, a solidão profunda e o desespero que eu tava antevendo não vem.

Só vem tédio, mesmo.
E criatividade, quando eu me engancho em alguma brincadeira com algo que eu encontro.

No fim do dia, enquanto o sol se põe, vem a cantoria de novo pelo vale.

Ao final, me arrepio com os gritos de resposta de todo mundo que tá espalhado pela floresta.

>> fome de quê?

Antes de dormir, me dou conta de que a fome tá bem mais amena do que eu esperava. Meu estômago ronca de vez em quando e posso sentir a água resfriando cada parte do meu esôfago e estômago a cada gole que dou, mas de fato não sinto a urgência de comer que às vezes sinto no dia-a-dia, depois de apenas algumas horas da última refeição.

Me questiono sobre a fome que tenho no dia-a-dia.

É fome de quê?

Não tenho uma resposta, mas suspeito que não seja só de comida…

DIA TRÊS

Tenho outra noite conturbada.
Parecia estar sem sono e fiquei superaquecido com segunda pele, blusa, cirola, calça, dois sacos de dormir e gorro.

Só sinto que durmo mesmo já próximo ao amanhecer, mas não acordo cansado.

Fui correndo pra pedra ver o sol aparecer.

Enquanto espero, sinto vontade de caminhar. E ali fico, por um bom tempo, caminhando em círculo com o máximo de atenção e concentração que eu consigo.

Me dou conta de que esses momentos “vazios” são um prato cheio pra criatividade. Que quando saio do modo “espera”, do modo “quero que o tempo passe logo pra isso acabar”, paro de sofrer e minha criatividade se manifesta, trazendo desfrute ali naquele momento.

Não é constante, às vezes dura mais, às vezes menos, mas descubro que rola.

Me direciono para colocar minha pedra no círculo do amigo e, no caminho, recolho algumas sementes vermelhas pra decorá-lo.

>> moscas mortas

Mais do que fome ou tédio, o que mais tá me enchendo o saco são as moscas.

Elas são muitas e são atrevidas.
Quando o sol começa a aparecer, eu já consigo ouvir o “zuuuum” à distância e, até que o sol se ponha, ali estão elas, incessantes, incansáveis e insuportáveis!

No período da tarde eu já não aguento mais cultivar minha não violência.

Com as justificavas de que eu não vejo nenhum papel dessas moscas no ecossistema e de que elas estão sendo extremamente violentas comigo, decido matá-las.

E o faço.

Mato muitas.
Com raiva.
Dedico muito tempo e atenção a isso.
Fico com minha sandália na mão esperando elas pousarem em alguma superfície mais rígida que a terra e dou a sandaliada de cima pra baixo, pra não dar chance de elas escaparem.

Mato umas 10 no total.

>> moscas sentem?

De repente, sentado na pedra, vejo uma mosca grande chegar perto de duas moscas mortas que tavam caídas numa outra pedra.

Acompanho sua atividade.

Ela mexe numa mosca morta. Anda até a outra, mexe nela. Volta, mexe na primeira. Levanta ela com as patinhas, tenta carregá-la dali.

Choquei.

“Será que elas eram da mesma família?”, me pergunto.

“Caralho, véi, cê matou as moscas, cara. A outra agora tá sentida”, falo pra mim mesmo.

Logo depois, vejo algumas outras moscas próximas umas das outras.
Vejo uma pequenininha pulando em cima de uma grande, saindo fora, pulando de novo. Elas se aproximam, cutucam uma à outra com as patinhas.

E ficam nessa por um tempo.

“Caraio, a mãe tá brincando com a criancinha. Que loucura!”

Tento me certificar de que eu não tô alucinando!

Tô em jejum fazia 3 dias e entediado para um cacete, mas não tô louco.

Não me martirizo por tê-las matado. Eu precisei deixar aquela raiva fluir.

Mas me ligo que, em situações como essa, onde um bicho tá me enchendo o saco enquanto estou em seu ambiente natural, e ele não me apresenta nenhuma ameaça real, não me sinto confortável em matá-los.

Se for um mosquito que me arranca sangue, uma cobra ou um rato que pode me passar doenças, talvez me sinta mais confortável.

Mas aquelas moscas?

Prefiro meditar coberto com minha manta do que matá-las.

>> fim do dia

Quando noto que o sol está se pondo, já espero pela cantoria que ecoaria em breve pelo vale.

Canto junto e vibro por ouvir gente. Percebo que estava sentindo falta.

Naquela noite, decido assistir à noite cair sentado na pedra, onde o céu estava aberto. Vejo o céu mudar de cor gradualmente, vejo a primeira estrela aparecer e tudo ficar escuro, até que a lua aparecesse também.

DIA QUATRO

Mais uma noite dormindo picado e com um sono profundo só perto de amanhecer. Me ligo que saco de dormir me incomoda porque tira minha mobilidade, não deixa eu mexer as pernas direito.

Percebo que criei um relógio interno, sincronizando com os acontecimentos que eu conseguia “marcar” e esperar, pois sabia que iam acontecer: o sol aparecer no leste enquanto a lua se ia no oeste; acompanhar o sol até chegar no ponto mais alto; o céu começar a mudar de cor quando o sol se punha; a cantoria começar logo ao anoitecer; esperar as primeiras estrelas aparecerem; esperar a lua subir.

“Há quantos milhares de anos essas não são atividades recorrentes dos seres humanos?”, me pergunto.

>> sentindo as mudanças

Nesse assistir da natureza, me dou conta de uma coisa: a natureza se repete todos os dias, mas nunca igualzinho.

Eu podia esperar o sol subir, pois isso seguro que ia se repetir. Mas teve dia com neblina e dia sem.
Tava certo de que no meio do dia, o sol estaria no ápice. Mas teve dia em que dava pra ver as sombras das árvores e dia em que o sol tava encoberto por nuvens.
Sabia que a primeira estrela a aparecer seria Venus logo ao sul, mas teve dia em que o céu tava limpaço no momento de sua aparição e teve dia que tava rolando um ventinho diferente e as nuvens dominaram o céu.

Meditando de tarde, embaixo da minha manta de proteção contra os mosquitos, ainda de olhos fechados, sinto o clima mudar.

Sempre que venta, dá pra ouvir o vento se aproximar e se afastar, bem como saber sua direção, pelo mexer das árvores. Percebo que os ventos estão mais frequentes do que o normal e mais frio do que nos outros dias naquele mesmo horário.

Quando termino de meditar, abro os olhos e vejo que o céu, que antes tava azulzinho, está cheio de nuvens relativamente carregadas, que se moviam do sul ao nordeste.

“Cacete, como é louco meu corpo ter percebido isso em minha cabeça saber”, fiquei pensando.

Tenho conhecimento desses fatores, mas em geral os marco mais pelo relógio ou pelo olhar do que por minha percepção corporal.

Assistir à natureza me parece algo importante. Sou ela. Se não me ligo no que tá rolando ao redor, comé que vou entender o que tá rolando comigo?

“Quero dar mais atenção pra isso no meu dia-a-dia”, desejo.

>> tédio como nunca antes

De tarde, sou acometido por um tédio que nunca vi antes.
Esgotei minha criatividade de brincar com pedras, de caminhar em círculo, de mexer nas pinhas caídas no chão.

Fico assistindo às sombras das árvores mudarem de direção. Mas putaquepariu, elas tardam demais em se mexer.

Então me pego assistindo a um filme de pensamentos aleatórios que começa a rodar na minha cabeça.

>> preciso de gente

Comecei a pensar em todo mundo que amo e que já não vejo há um tempo.

“Como me nutre estar com essas pessoas!”, me ligo.

Quero jogar bola ca galera, quero pedalar prum bar pra encontrar todo mundo, quero almoçar de domingo na casa dos meus tios, quero descer pra praia com mermão e minha mãe e ficar tostando na areia falando de coisas aleatórias enquanto eles comem a isca de peixe deles e eu como meu açaí.

Penso que quando voltar pra casa, quero fazer um Só Menino Gourmet e cozinhar pra geral.

>> amo comer demais

Não considero como fome o que sinto.
Me parece mais desejo.

Mas é um desejo forte do caralho!

Crio uma lista na minha cabeça das coisas que eu quero comer.

Pasta de amendoim, açaí, pizza com muito queijo, a muçarela de búfala com rúcula que minha mãe faz. Macarrão, mjadara, falafel.

Minha boca enche d’água, mas eu sei que ainda faltam pelo menos umas 15 horas até eu poder comer algo, então tento levar meu pensamento em outra direção.

>> tô pronto

“Me sinto pronto”, penso.
Pronto pra, de alguma maneira, voltar.

Pronto pra parar um pouco, começar a dar aulas de yoga, me envolver com coisas de médio prazo que tô afim de aprender.

Quero acordar 6am, quero pedalar pros meus lugares favoritos, quero cuidar dumas plantinhas, quero fazer minha pasta de amendoim.

Quero morar em algum lugar de novo, quero decorar minha casa, quero fazer compras do mês, quero compostar o lixo orgânico.

aceito.

>> euforia

Me vejo eufórico, antecipando tudo isso.

As pessoas, as comidas, a rotina.

Fecho os olhos pra sentir no corpo essa euforia.
Por debaixo da manta, sinto o vento friozinho rolando, sinto meu coração batendo muito forte na barriga e no pescoço.

Quero que o tempo passasse logo, mas sei que essa não é uma opção.

Depois da tarde mais longa da minha vida, o pôr do sol chega tipo um calmante natural.

As canções ecoam pelo vale, agora com uma nova canção de que gosto muito:

“Mother I feel you under my feet
Mother I hear your heeeaaaart beeeeat

Hey ya, hey ya, hey ya
Hey ya, hey ya, hey ho
Hey ya, hey ya, hey ya
Hey ya, heeeeeey hooooo”

Me abrigo com roupas de frio pra ver a noite tomar conta do céu e esperar o último dia terminar.

Logo deitarei, dormirei e, amanhã de manhã, arrumarei as coisas pra voltar pro acampamento base.

>> noite em claro

Entro no saco de dormir mais tarde do que nos outros dias, mas não tem nem sinal de sono.

Olho pro céu.
Acompanho as nuvens.
Olho pras árvores.
Fico de olhos fechados.
Olho pro céu de novo.

Nada de sono.

Decido sair do saco de dormir e ir sentar na pedra pra assistir a noite. Assisto às nuvens, conto estrelas, acompanho a luz da lua ficar mais forte por detrás do morro.

Bocejo umas duas vezes.

“Opa, hora de deitar”.

Voltei pro saco de dormir.

Nada de sono.

Não durmo mais que duas horas ao longo da noite toda.

Umas senhoras, na floresta, me dizem “vai logo que já já cê vai ter que arrumar as coisas pra voltar pro acampamento base”.

Acordo.

Olho em volta pra ver se era real.
A floresta tá clara, mas ainda tá de noite.

Fico tentando me lembrar que que eu tinha que fazer antes de voltar.

Nada.

Levanto e vou esperar o amanhecer na pedra.

Até que ele veio.

DIA CINCO

Começo a arrumar minhas coisas.

Tô meio anestesiado com a noite sem dormir.
Tô meio em choque com a ideia de encontrar gente.
Tô meio eufórico com a ideia de comer algo.

Tudo pronto.

Tomo um tempo pra ir aos lugares onde mais estive nos últimos quatro dias pra agradecer o acolhimento e a companhia.

Olho pras pedras, pras árvores, dou uma olhada geral no vale, girando 360 graus.
Fecho os olhos, agradeço demais.

Registrando a casa antes de partir

Pego minhas coisas e parto.

>> contemplativo

Sou o primeiro dos “buscadores” a chegar no acampamento base.

Sou recebido com sorrisos e abraços pelos facilitadores.
Passo pelo círculo do limiar, onde sou abençoado de volta.

O café da manhã ainda está sendo preparado e sou aconselhado a relaxar um pouco enquanto espero.

Percebo que não quero falar muito.

Fico deitado olhando pro nada. Pra copa das árvores, pro céu.
Volta e meia olho os facilitadores cortando as frutas, os tomates, preparando a sopa de missô.

Revisito os quatro dias rapidamente na minha cabeça e eles já não parecem tão longos.

Tenho a sensação de que voltei de uma batalha.

>> uma pêra

O Xavi, então, levanta e caminha até mim com uma pêra cortada em quatro pedaços em uma tampa de plástico.

“Para que disfrutes antes que el desayuno esté listo”, ele me diz e volta a seu trabalho.

Seguro aquela tampa e olho aquela pêra.

Choro.
Choro muito.
Choro como não chorava há algum tempo.
Choro como não esperei que choraria ali, naquela situação.
(Tô de olhos mareados só de escrever.)

“Nó, véi, tem uma pêra na minha frente e eu posso comê-la”, penso.

Acho que nunca comprei uma pêra na minha vida.
Não que não goste de pêras, mas tô acostumado com banana, manga, mamão, abacate. Então a pêra sempre perde fácil no páreo das frutas

Mas não era sobre a pêra.

Era sobre o presente que me foi dado.
Que me foi dado pelo Xavi, mas mais ainda, que nos foi dado pela mãe terra.

Que privilégio.

Que privilégio poder ter acesso a comida num mundo onde tanta gente não sabe o que ou se vai comer hoje.
Que privilégio ter pessoas cuidando de mim, preparando um café da manhã com tanta atenção e carinho.
Que privilégio ser parte dessa força que permite que uma semente (UMA SEMENTE!) germine, saiba como criar raízes, buscar água, absorver nutrientes, crescer, produzir troncos, galhos, folhas e, então, dar um fruto que alimenta aos filhos da terra.

Dou uma mordida na pêra.
(Me arrepiei aqui escrevendo.)

Parece que minha boca é inundada por um monte de cristaizinhos de açúcar que pulam entre minhas papilas gustativas.
Degusto cada pedaço em uma velocidade lenta nada comum.

Chorando e sorrindo, fechos os olhos e penso:

“Obrigado, Mãe.”

Canção que escrevi sobre a experiência.

>> reencontro

As pessoas começam a chegar pouco a pouco.

Cada uma é abençoada de volta no círculo do limiar antes de se sentar para desjejuar. Os olhares dizem tanto que nem precisamos falar nada além do abraço que damos.

A cada um que recebo, desejo “aproveite sua primeira mordida”.

Noto que as pessoas estão muito magras e cai minha ficha de que devo estar, também.

O direcionamento é para não compartilharmos nossas histórias ainda, pois teremos os dois próximos dias para fazê-lo, durante o período de incorporação da experiência.

Depois de algumas horas, nos arrumamos para voltar.

>> dia livre

De volta na EcoDharma, temos o dia para descansar.

Finalmente me banho e deixo em um colchão para descansar.
Tô exausto, mas não consigo dormir. A cabeça tá a mil.

Fico um pouco ansioso.
Não dormi na última noite, to cansado e não tô conseguindo dormir.

Que tá rolando?

Saio a perambular e decido fazer um chá. Encontro a Mirel na sala de estar, que também está na mesma.

Conversamos e nos sentimos aliviados de não sermos os únicos inquietos.

Pouco a pouco, vem chegando mais gente, que se senta conosco para um papo gostoso, numa energia aconchegante.
À noite, nos sentamos em volta do aquecedor com chocolate quente para escutar o Rupert contar a história do Rato Que Pula.

INCORPORAÇÃO

Passamos os dias seguintes sentados em círculo compartilhando histórias.

Choros, risos, apreensão.
Poemas, canções, desenhos.

Muitos ensinamentos através das histórias que escuto.
Novos ensinamentos a partir da história que conto.

>> sem planejar

Decido compartilhar minha história sem planejar. Sem ter uma narrativa.

Decido fazê-lo assim para contá-la de maneira mais crua, sem poli-la de acordo com o que acredito ser belo ou feio. Sem dosá-la pensando se o grupo ia gostar do que escutasse ou não.

Conto tudo de maneira bem parecida como acabo de escrever aqui.

Rio, me exponho, me sinto vulnerável, choro.

Nas respostas, me marcam termos variados que definem meu sentimento no momento: íntegro, cru, imperfeito, vivo, violento, engraçado, estranho, compassivo, acolhedor.

O Dieter, um alemão de 61 que estava ali marcando sua passagem para a terceira idade, disse algo que me marcou: "Felipe, adorei que você, sem perceber, aprendeu a, em vez de matar tempo, preencher tempo (uma brincadeira em inglês com os termos "kill time" e "fill time").

Dele, também, escutei a seguinte frase:

"Queria te dizer que se eu tivesse um filho, adoraria que ele fosse como você!" — Dieter

Eita porra!

Me expus ali, contei tudin que rolou nos 4 dias, das minhas epifanias aos meus medos, e a galera não só não me gosta menos por isso, como me agradeceu pela transparência?

Pois é, acho que tá mais do que na hora de confiar que nas minhas sombras pra encontrar os presentes que posso oferecer pro mundo.

Gradicido, comunidade humana.

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