NINGUÉM PODE FAZER A MESMA REFEIÇÃO DUAS VEZES

Assim como Heráclito, o filósofo grego disse algo do tipo “Ninguém pode entrar no mesmo rio duas vezes", entendi que para o Ayurveda, ninguém pode fazer a mesma refeição duas vezes.

Fê Chammas
ABRÁÇANA
7 min readApr 20, 2021

--

De fato, essas bananas não são como nenhuma outra que já comi ou comerei. São as primeiras de uma bananeira que eu plantei, cuidei e colhi.

Nas últimas semanas, temos estudado nutrição (Ahara) na formação em Ayurveda que tô cursando. Observando a forma como essa medicina milenar sugere olharmos para como nos alimentamos, me caiu uma ficha interessante.

Assim como Heráclito, o filósofo grego disse algo do tipo “Ninguém pode entrar no mesmo rio duas vezes, pois quando entra novamente, já não são as mesmas águas, e a própria pessoa já não é mais a mesma”, entendi que para o Ayurveda,

ninguém pode fazer a mesma refeição duas vezes,

pois o processo de alimentar-se depende não só da comida que se come, mas também de uma série de outros fatores que se convergem no momento de uma refeição e influenciam diretamente em como aquele alimento será processado e absorvido.

Explico melhor.

O Ayurveda aponta 8 fatores importantes para ingestão de alimentos, a partir dos quais aprendemos o que levar em consideração na hora de decidir o que comer.

Os fatores são os seguintes:

Natureza do alimento (1), que, a partir do olhar elementar do Ayurveda, classifica os alimentos entre leve, de fácil digestão, ou pesado, de difícil digestão. Importante notar que o fato de um alimento ser pesado não significa que ele deva ser evitado, mas sim que ele vai precisar de condições adequadas para que seja digerido.

Depois, o processamento do alimento (2) deve ser considerado. Aprendi que um arroz cozido somente em água é mais leve que um arroz cozido com água e sal, pois o sal entre no alimento e faz com que ele retenha mais água. Se o arroz for levemente tostado antes de cozido, ele fica ainda mais leve. Algumas formas comuns de processar o alimento são cozinhar — nã pressão ou não — , demolhar, desidratar, moer.

A combinação de alimentos (3) é algo super importante para o Ayurveda. Você provavelmente já escutou o dito popular que diz que comer manga com leite mata. Conheço gente que comeu e não morreu, mas, segundo o Ayurveda, esse dito tem um tanto de verdade. O ponto é que a combinação de alguns alimentos pode dificultar muito a digestão — e leite com frutas é uma dessas combinações. Outras combinações são laticínios e qualquer tipo de carne, mel e ghee em quantidades iguais. Por outro lado, algumas combinações de alimentos podem ser super benéficas, estimulando o processo de digestão.

Além de entender a natureza dos alimentos, como processá-los e quais combinações fazer, o Ayurveda nos convida a levar em consideração a quantidade que comemos (4). E aí é importante notar dois principais aspectos: primeiro, que cada pessoa vai precisar de uma quantidade específica de alimento de acordo com seu biotipo, estilo e momento de vida, mas isso também varia dia a dia e de refeição para refeição; e segundo, que é importante evitar comer demais, mas também é importante evitar comer de menos.

Já havia escutado a ideia de que devemos sentar para comer mentalmente preparados para deixar a mesa quando estivermos 75% cheios e o olhar Ayurvédico bate com isso.

Tem uma imagem que facilita entender essa ideia: imagina que o estômago é como um liquidificador que vai processar sólidos e líquidos. A recomendação é encher cerca 50% do espaço com sólidos, cerca de 25% de líquido e deixar 25% vazio. Da mesma maneira que o liquidificador precisa de espaço para movimentar o conteúdo, o estômago também precisa para movimentar os alimentos e processá-los adequadamente.

O local de origem do alimento (5) também deve ser levado em consideração para uma refeição. O Ayurveda considera três principais locais de origem — regiões desérticas/áridas, regiões pantanosas e regiões intermediárias — e diz que cada uma vai produzir alimentos com combinações elementares diferentes e típicas daquela região.

Esse conceito me chama a atenção porque acho que podemos aplicá-lo também a um fenômeno moderno que é a globalização de uma série de alimentos que dão a volta no planeta para serem consumidos em locais onde não cresceriam. Esse fenômeno não existia quando os textos de Ayurveda foram escritos, pelo menos não como fazemos atualmente, e não consigo deixar de pensar que é genial da parte dos Vaidyas (médicos Ayurvédicos) já saberem o mal que isso faz. Comer uma banana na Inglaterra ou um salmão no Brasil tem implicações ecológicas gravíssimas — em nosso corpo, inclusive, é que parte viva da ecologia e do que chamamos "meio ambiente". Manter uma alimentação local, com alimentos da região em que você vive, (além de evitar degradação ambiental) te permite comer coisas frescas, integradas àquele ecossistema, sem conservantes, e sem serem colhidos muito antes do tempo para que durem por longas viagens, pois isso faz com que os alimentos contenham uma concentração maior de proteínas específicas chamadas lectinas que podem ser muito danosas e causar distúrbios sérios em nossa saúde — muitos dos quais vemos acontecer amplamente na sociedade moderna (sobre esse último ponto, vale muito ler O Paradoxo Dos Vegetais, de Dr. Steven Gundry; achei um vídeo resumo do livro aqui).

Também devemos levar em consideração o tempo ou momento (6) em que nos alimentamos. E o Ayurveda cita duas diretrizes em relação a isso: por um lado, a hora do dia e a estação do ano, pois ambas influenciam diretamente nas condições ambientais — temperatura, umidade, condições do ar, que reverberam na atividade metabólica corporal; e por outro, o estágio de vida em que nos encontramos, pois isso também vai influenciar diretamente em como nosso organismo está funcionando e qual nossa capacidade de processar alimentos e gerar energia.

Os dois últimos fatores são mais qualitativos e considero serem as dicas de ouro do Ayurveda em contraponto ao olhar nutricional moderno, que considero de maneira geral ser bem mecanicista e orientado para resultados.

O penúltimo são regras gerais de como se alimentar (7):
_seguindo um tanto do que já foi citado, é recomendado manter alimentações quentes e untuosas (evitando coisas frias e muito secas);
_manter quantidades e combinações de alimentos adequadas;
_se certificar de que a refeição anterior foi completamente digerida, o que pode ser feito observando as sensações no estômago e intestino, a fome, as evacuações (acho esse ponto muito importante, pois muitas vezes já me peguei comendo sem fome só “porque tá na hora do almoço”);
_também se recomenda evitar rir, falar ou manter outra atividade enquanto nos alimentamos; isso pode soar extremista, mas acredito ser de suma importância levarmos isso em consideração. Não acho que precisamos enrijecer e levar ao pé da letra, mas realmente acredito que, nos tempos modernos, em que muita gente almoça em frente ao computador em reunião, assistindo TV ou correndo e preocupado porque tem uma entrega importante no trabalho, podemos evitar muitas doenças simplesmente sentando com calma, sentindo o cheiro da comida, olhando para ela com atenção, mastigando com intenção, sentindo as texturas e sabores na boca e comendo com prazer e gratidão.

Por fim, o Ayurveda considera quem está se alimentando (8) como um fator de suma importância na hora de decidirmos o que comer. Podemos entender que esse fator é importante por questões práticas, principalmente relacionadas aos hábitos da pessoa, seu biotipo, estilo de vida, idade, etc., mas também gosto de olhar considerando que a pessoa que se alimenta precisa ser levada em consideração por fatores subjetivos.

Você já viveu alguma situação de emoções fortes e perdeu o apetite?
Ou talvez já tenha se visto ansiosa e querendo comer em momentos que não come geralmente?

Pois é, somos organismos vivos, dinâmicos e nosso estado emocional está o tempo todo influenciando como nos relacionamos conosco, com os outros e com a comida que ingerimos. Portanto, se estamos "digerindo" emoções fortes, certamente vamos precisar levar isso em consideração na hora de comer para não sobrecarregar nosso organismo.

Depois de tudo isso, acho que faz mais sentido a ideia de que “ninguém pode fazer a mesma refeição duas vezes”, né?

Ainda que os grãos, vegetais e leguminosas no prato sejam os mesmos, segundo o Ayurveda, precisamos considerar as variações no modo de preparo dessas comidas, as combinações de alimentos, a quantidade consumida, os locais de produção e consumo, o momento do dia, do ano e da vida, e o estado atual da pessoa que come — a digestão da refeição anterior, a qualidade da presença e seu estado emocional.

Portanto, a comida nunca é exatamente a mesma, o ambiente em que estamos nunca é o mesmo e nós nunca somos os mesmos nos alimentando.

Eu sei que tudo isso pode parecer muita coisa pra pensar em relação a como se alimentar — vira e mexe me pego bem crica tentando seguir as regras ou me sentindo culpado por saber que estou fazendo algo inadequado.

Com o tempo venho aprendendo que, independentemente de qualquer regra, temos o melhor termômetro do mundo à nossa disposição o tempo todo: nossos corpos.

Se nos mantivermos atentos, nossas sensações nos dizem como estamos e do que precisamos, e essa mesma atenção pode facilitar muito todo o processo de digestão e absorção do que comemos.

Então, com consciência e sem nóia, podemos aproveitar todos os presentes que recebemos da terra, respeitar e cuidar dos nossos corpos e desfrutar dos privilégio de estarmos vivos.

--

--