O FEDOR DA MINHA COMPOSTEIRA, AYURVEDICAMENTE EXPLICADO

MINHA COMPOSTEIRA TÁ FEDENDO MUITO E A AYURVEDA EXPLICA O QUE ESTÁ ACONTECENDO NESSE PROCESSO

Fê Chammas
ABRÁÇANA
5 min readJun 29, 2020

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Aqui em casa compostamos em 4 bombonas plásticas todo o resíduo orgânico que geramos. Uma fica sempre vazia para irmos enchendo de restos de alimentos e serragem, enquanto as outras ficam descansando com a matéria orgânica. Quando chegamos no limite de enchimento, esvaziamos a bombona que tá parada há mais tempo, colocamos a mais nova para descansar e passamos a encher a recém esvaziada.

A estrutura é interessante porque conseguimos cuidar de todo o resíduo orgânicos de mais de 10 pessoas em um espaço pequeno e sem bichos.

O grande problema que estamos tendo é que o chorume tem saído MUITO fedido. Isso não é bom porque incomoda às pessoas e porque teoricamente uma compostagem bem feita não deveria feder.

“COINCIDÊNCIAS” DA VIDA

Falei com uma amiga que manja e ela levantou uma boa suspeita: deve estar faltando oxigênio na decomposição e a fermentação anaeróbica é que pode estar gerando esse odor.

Dois dias depois, na minha aula de ayurveda, falamos sobre o processo digestivo. O conteúdo veio na hora exata e fiquei impressionado com o fato de que a digestão que acontece no nosso corpo é a mesma que tá acontecendo no meu composto.

Bora pra teoria:
A ayurveda enxerga o mundo material e seus processos de morte e vida a partir dos elementos naturais — terra, água, fogo, ar e éter/espaço — e eles participam ativamente do nosso processo digestivo.

Quando a digestão está prestes a começar (no fim da digestão anterior), ou seja, para que sintamos fome, o ar é responsável pela concentração de energia no centro do nosso corpo através dos ventos concêntricos (samana vayu). É um mecanismo natural do corpo que, se estiver em equilíbrio, o ativa para avisar que a digestão anterior já terminou e, portanto, precisamos começar a próxima para ter o que distribuir para o corpo mais pra frente.

O elemento água entra em ação quando ingerimos a comida — primeiro na boca, através da saliva (bodhaka kapha), e depois no estômago, através das águas que vão emulsificar a comida que chega (kledaka kapha) e que protege o próprio estômago dos ácidos necessários para a digestão e do calor proveniente dos alimentos.

O elemento fogo entra em ação principalmente no estômago e no duodeno (pachaka pitta) através das substâncias produzidas para “cozinhar” e quebrar os alimentos, que por sua vez também produzem calor, e que serão em breve distribuídos e absorvidos pelo corpo.

Todo esse processo — e mais algumas coisas adjacentes — forma o que a ayurveda chama da jathara agni ou o fogo digestivo.

Dependendo do equilíbrio dos elementos no corpo, esse fogo pode se manifestar de 4 maneiras diferentes.

Primeiro e idealmente, o fogo digestivo está em equilíbrio (sama agni), ou seja, em quantidades suficientes para dar fome, processar o alimento ingerido completamente sem deixar resíduos e também sem aquecer demais os tecidos dos órgãos do corpo.

O fogo digestivo também pode estar instável (vishama agni), ou seja, às vezes num calor desejável, às vezes muito fraco, às vezes forte demais.

Se demasiadamente forte de maneira constante, ele será um fogo digestivo penetrante (tikshna agni). A princípio isso parece ótimo, pois ele “digere qualquer coisa”, mas esse fogo pode se espalhar pelo corpo e gerar muitas doenças no médio e longo prazo.

Por fim, pode acontecer o oposto, que é o fogo digestivo lento (manda agni), que geralmente tem dificuldade de processar os alimentos, gerando embotamento, refluxos e dificultando a absorção de nutrientes pelo corpo.

O QUE ISSO TEM A VER COM A COMPOSTAGEM?

No processo digestivo do corpo, os elementos precisam estar devidamente equilibrados.

Se nossos ventos estiverem dispersos, talvez não sintamos fome com a regularidade adequada ao nosso corpo.
Se tivermos muito fogo, processamos tudo, mas também podemos queimar os tecidos e órgãos do corpo.
Se tivemos pouco fogo ou muita água no estômago, o processo de digestão pode desacelerar.

O que acontece quando os alimentos não são completamente processados, principalmente com o fogo digestivo lento, é que eles se transformam em toxinas (ama, que em sânscrito significa “não-cozido”) e um dos principais sinais que mostram a existência de toxinas é o fedor.

Gases, arrotos, refluxos, fezes, urina e suor muito fedidos, portanto, são um sinal de que nosso corpo não está dando conta de processar completamente os alimentos que estamos ingerindo.

Foi aí que caiu a ficha: a compostagem é um processo digestivo e o fedor do chorume é ama, o que significa que a “digestão” da minha composteira não está acontecendo completamente.

Juntando toda essa teoria com a ideia de que talvez esteja faltando oxigênio no composto, por ele não estar arejado, cheguei à hipótese de minha composteira está com um manda agni, ou um fogo digestivo lento.

Como ela fica fechada em uma bombona plástica vedada e sem oxigênio (falta de ar), toda a matéria orgânica fica muito úmida (excesso de água). Toda essa água impede que os microorganismos respirem e que a temperatura (fogo) da massa orgânica aumente para que o processo digestivo aconteça. Isso faz com que os alimentos não sejam processados devidamente e apodreçam, gerando muita ama (ou matéria “não-cozida”).

O resultado disso é todo o fedor que temos experimentado quando extraímos chorume ou esvaziamos as bombonas.

Minha suspeita é que o excesso de água é o que está causando toda essa disfunção no processo e vejo duas possíveis maneiras de cuidar disso:

  1. adicionando muito mais serragem na massa orgânica, pois ela é seca e airada, o que ajudaria a contrabalancear a água; ou
  2. encontrar uma maneira de deixar o ar penetrar nas profundezas da massa orgânica para que o processo de digestão aconteça com um equilíbrio adequado dos elementos.

Gosto mais dessa segunda opção porque já notei que quando esvazio as bombonas e deixo a matéria orgânica — que ainda não está totalmente composta — descansar numa banheira, o processo de compostagem avança rapidamente, o cheiro se vai e a matéria se transforma em terra preta. Entendo que tirar o excesso de água da matéria e expô-la ao ar ao esvaziar a bombona faz a diferença.

Ainda não coloquei isso em prática, mas já fiquei muito empolgado de perceber que o processo de compostagem, essencial para a natureza cíclica da matéria, acontece de maneira tão análoga ao funcionamento do meu corpo.

Em algum momento da aula, o Gil falou sobre como, ao nos alimentarmos, nós matamos a comida e a desintegramos, separando sua matéria de seu espírito. Dentro do nosso corpo, através do processo digestivo, somos capazes de integrar tanto sua matéria quanto seu espírito em nossa existência.

Achei lindo e pra mim justifica ainda mais a compreensão de que cuidar da compostagem dos nossos alimentos é um ato extremamente importante e até sagrado e espiritual. Ao fazê-lo, estamos aprendendo a deixar morrer, a desintegrar matéria e espírito, para que novas vidas os integrem e possam vir a ser.

Sigamos praticando nossas formas de espiritualidade.

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