PRECISAMOS DE AFETO E REPERTÓRIO PARA ESTARMOS SAUDÁVEIS

POR TRÁS DAS ESTRUTURAS FÍSICAS E EMOCIONAIS DE CADA PESSOA EXISTE UMA HISTÓRIA DE AFETO E UM REPERTÓRIO DE EXPERIÊNCIAS.

Fê Chammas
ABRÁÇANA
10 min readApr 14, 2020

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EU FAZENDO 3 ANOS COM MUITO AFETO (da esquerda pra direita: um amiguinho, minha mãe, meu irmão do meio, eu, meu pai, uma amiguinha e meu irmão mais velho)

Ando bem impactado com os conteúdos que tenho visto no curso Marma Vidya — Uma Abordagem Energética e Emocional do Ayurveda e as provocações têm ficado muito vivas em mim.

Dessa vez, o que tá pulsando em mim é a ideia de construirmos repertório — afetivo, emocional, físico — como forma de manter a vida fluindo por nós e, portanto, nos mantermos saudáveis.

Segue um pouco do que tenho pensado aqui.

AFETO AFETA A GENTE

O que tô aprendendo é que afeto é o ingrediente principal que nos faz deixar de ser bebês completamente dependentes e nos construirmos como seres autônomos.

Afeto é o que constrói o vínculo entre dois seres humanos e que permite que uma pessoa se sinta segura ao explorar sua autonomia, pois sabe que terá amparo, cuidado e possibilidade de troca sempre que precisar.

O vínculo se materializa através de leite materno, colo, brincadeiras, escuta, presença, atenção.

Se passo por experiências de ruptura de vínculo — fome, frio, medo, frustrações, tristeza, arrependimento — sem nenhum cuidado e atenção, vou construir minha expressão desde um lugar de pouco vínculo, de pouco afeto — e é bem possível que eu construa uma estrutura de proteção (psicológica e física), que vai se certificar de que eu não seja “afetado” por essa falta de vínculo que experimentei.

Quando sentimos frio e somos aquecidos, quando sentimos medo e somos acolhidos, vamos entendendo, através do afeto, que apesar das rupturas, ainda há vínculo.

Pensando sobre isso, fico refletindo sobre como a noção de privilégio socioeconômico chega algo que parece um detalhe e é tão difícil de mensurar como a quantidade e a forma como recebemos afeto desde o começo da vida.

Fica evidente pra mim meu próprio privilégio de ter nascido numa família não só com pai e mãe, mas também dois irmãos mais velhos disponíveis para me dar atenção. Para além das condições materiais que minha família me proveu, eu sempre tive uma segurança muito firme de que eu tinha com quem contar, que sempre haveria alguém pra me apoiar num momento de necessidade.

É bem claro pra mim o tamanho da diferença que isso fez e faz na minha vida.

AFETO NÃO É SÓ PASSAR A MÃO NA CABEÇA

É importante deixar claro que esse afeto que dá estrutura para a construção de uma autonomia saudável não é só carinho, abraço e criar uma relação de "pode tudo".

Se ao longo do meu desenvolvimento existe uma tentativa de me “privar” das experiências de ruptura, com gente fazendo tudo por mim, é possível que eu não desenvolva estrutura suficiente (psicológica e física) para minha autonomia e que eu passe a ser “afetado” demais, sem conseguir fazer as coisas por mim mesmo.

Portanto, um vínculo saudável se materializa também através de limites que fomentem autonomia.

No curso, o Gil trouxe o exemplo de uma leoa que, quando é hora de seus filhotes começarem a fazer coisas por si mesmo, ela os empurra com o focinho. Ela coloca um limite de até onde ela vai fazer coisas por ele (ainda que provavelmente fique por perto enquanto ele tem essa experiência). O ponto é que esse "vai lá e faz" também é uma forma de afeto, pois a leoa sabe que é importante para o desenvolvimento e a saúde daquele filhote que ele aprenda a fazer as coisas por si mesmo.

Isso também me leva a refletir sobre os limites bem definidos que tive na minha família em relação a responsabilidade, mentira, dinheiro. Apesar de todo o vínculo e cuidado que recebi, nem de longe tive uma educação onde eu "podia tudo".

Ao longo do meu processo de me tornar adulto, tenho reconhecido a importância de ter tido esses limites e senso de responsabilidade.

Trabalhei desde o primeiro ano de faculdade porque sabia que era importante dedicar atenção ao meu desenvolvimento como profissional.
Tenho bastante cuidado com dinheiro desde sempre porque sei que ele não é infinito e meu estilo de vida precisa caber dentro do que ganho.
Sempre fomos ensinados que "combinado não é caro" e que, portanto, deveríamos cumprir o que combinamos ou prometemos.

Mais recentemente, tenho buscado fazer escolhas e assumir outras responsabilidades que tem também implicações sistêmicas, como consumir orgânicos e saber de onde eles vêm, oferecer meu tempo para cuidar da filha de uma amiga, construir relações e conversas com mais escuta e transparência, minimizar a compra de coisas com embalagens, fomentar com meu dinheiro e atenção projetos que tenham implicações políticas.

Estou certo de que muito da responsabilidade que tenho construído só é possível pelos limites que recebi na minha educação.

O interessante dessas ideias é que entre os dois extremos de

crescer sem vínculo e construir uma carapaça psicológica e emocional de proteção;

ou crescer com vínculo "demais" e não desenvolver autonomia e responsabilidade

há um espaço com possibilidades de equilíbrio em relação à quantidade e à maneira como recebemos afeto para construir uma dinâmica saudável de autonomia e vínculo.

O AFETO NO CORPO

Essa quantidade saudável de afeto reflete em uma estrutura corporal saudável para que possamos experimentar tanto o vínculo quanto a autonomia.

Num nível corporal, o que acontece nesse processo é que, para irmos de bebês sem controle corporal — que permitem que todos os impulsos viscerais fluam livremente — a um corpo em pé, com capacidade de sentir e ainda sim deliberar sobre como se responder, devemos construir um certo nível de inibição desses impulsos viscerais.

É inibindo as ondas de excitação e impulsos viscerais que nossa musculatura voluntária começa a se desenvolver e começamos a ter controle do nosso corpo.

Essas inibições podem acontecer em quantidades superiores ao saudável, quando não recebemos afeto suficiente. Ou pode acontecer em quantidades inferiores, quando somos privados de experiências de ruptura.

Escutando isso, me vem a ideia de que o afeto que recebi e recebo praticamente determina o tamanho do desafio que vou ter ao longo da vida para manter um equilíbrio nas minhas dinâmicas de vínculo e autonomia, relação e independência.

Acredito que todo mundo que já teve um relacionamento amoroso já se perguntou

"qual o limite entre me entregar pro relacionamento e construir coisas juntas (vínculo); e manter minha independência e minha vida individual (autonomia)?"

Esse é um ótimo exemplo de situação em que preciso de equilíbrio para não me perder em um dos extremos de vínculo ou autonomia.

O mais interessante é voltar pras situações em que me senti muito vinculado a uma parceira e me dar conta de como o desejo por autonomia se expressava no meu corpo.
Contrações abdominais que me davam firmeza para defender minhas coisas.
Músculos mais rígidos que me deixavam mais reativo nos assuntos em que eu queria firmar meu ponto versus o dela.

Em situações contrárias, em que eu queria mais vínculo, tenho a memória de sentir excitação em meu corpo quando combinávamos algo junto.
Ou um relaxamento profundo quando conseguia receber o carinho e o acolhimento que materializaram esse vínculo de que eu necessitava.

Vai ficando mais claro pra mim o quanto minha história de afeto ao longo da vida influencia esses mínimos momentos.

Entendo que, já adulto, um nível equilibrado dessas inibições significa

conseguir me entregar às emoções quando necessário, mas de maneira deliberada e consciente;
e conseguir me manter ativo e estruturado quando preciso, mas sem ignorar, atropelar ou esquecer o que estou sentindo.

Essa capacidade a nível corporal significa ter uma musculatura que sustente as sensações que acontecem no corpo a cada experiência que vivemos sem suprimí-las nem disparar em reatividade.

Esquema que desenhei na aula a partir do conteúdo

Quando entendi que existe uma musculatura adequada para conseguir navegar entre os extremos de "afeto demais" e "afeto de menos", a pergunta que me veio foi:

como construo essa musculatura?

E a resposta que recebi não podia ser mais estimulante: através de repertório.

REPERTÓRIO NO CORPO

O Gil me propôs uma dinâmica breve em que fui fazendo alguns movimentos, contraindo algumas partes específicas do meu corpo, e depois relaxei.

Ele apontou que a construção de repertório muscular se dá experimentando a musculatura em situações diferentes de contração e relaxamento.

Aí me caiu a ficha de que essa é uma maneira de olhar pra prática de Asanas (posturas) no Yoga.

Através de uma prática recorrente ao longo do tempo e de um olhar de pesquisa sobre a prática, vou me proporcionando a oportunidade de ampliar meu repertório muscular através dos diferentes movimentos e posturas de extensão, contração, torção, equilíbrio, mais tônus, mais relaxamento.

EXPERIÊNCIAS CONSTRÓEM REPERTÓRIO

Quando penso que o repertório e a estrutura corporal dão sustento ao repertório e à estrutura emocional, me conecto com uma reflexão que tenho já faz algum tempo sobre o que preciso para transpor ou superar meus desafios emocionais pessoais.

Me parece que, para transpor desafios, preciso passar pelas experiências desafiadoras, mas em novos contextos e com novos desenrolares para que eu aumente meu repertório e aprenda que “posso sentir o que sinto”.

Por exemplo: eu tenho muito medo de ser abandonado, de ser deixado pra trás. Por isso, tenho tendência a suprimir qualquer coisa que eu sinta ou queira fazer que me faça achar que minha namorada ou meus amigos vão "me deixar" ou não vão mais querer ficar comigo.

Nesta categoria estão coisas como expressar fraqueza, transparecer meu medo da solidão, pedir mais atenção ou cuidado quando preciso.

Se eu passar por situações em que me mostro fraco ou peço mais atenção e receber acolhimento, escuta e legitimação por parte da minha namorada ou de meus amigos, ou seja, se eu vivenciar que eles não me abandonaram ou rechaçaram por isso, acredito que um novo repertório será adicionado à minha história.

Se eu viver isso vezes suficientes, posso aprender, num nível corporal, que o abandono que temo provavelmente não vai acontecer e que tampouco preciso suprimir todos esses sentimentos.

É claro que na prática, ao vivo, no calor do momento, o nível de complexidade dessa situação é muito maior do que posso descrever. Eu nem sequer sei ao certo de onde vem esse medo de abandono, então a pesquisa necessária é muito profunda e também dá medo de fazê-la.

De qualquer maneira, me parece que tempo e cuidado são as chaves para criarmos o ambiente seguro necessário para que eu possa encarar esse desafio.

Me lembro que o Gil comentou em aula que a construção de vínculo é o caminho pelo qual um terapeuta pode ajudar as pessoas a reequilibrarem sua saúde.

Pensando aqui, fico achando que é exatamente isso que tempo e cuidado permitem — criar vínculo.

E esse vínculo tão importante para que as pessoas se permitam experimentar novas experiências para expandir seu repertório é o afeto que citei lá no começo da reflexão.

AFETO E REPERTÓRIO NA EDUCAÇÃO

A última reflexão que me veio é relacionada minha história de afeto na educação que recebi dos meus pais e irmãos.

Meus pais nunca estudaram nada formalmente sobre como educar filhos.
Éramos muito livres em relação ao que comer ou a que horas comer, não tinha limite de tempo na frente da TV ou no computador e ela nunca checou se eu fiz ou deixei de fazer uma tarefa da escola.

Minha mãe até nos ajudava quando queríamos fazer algumas coisas “erradas”.

Meus amigos queriam matar a primeira aula de sexta-feira pra ir na feira comer pastel. Eu não precisava esconder isso da minha mãe. Ela sabia e me levava lá.
Ela achava engraçado que para várias provas da escola meu irmão fazia colas profissionais em fonte tamanho 06 no computador.

Enfim, são muitos os exemplos de “liberdade” que ela nos dava, pra muito além de muitas famílias de amigos meus.

Em contraponto, tínhamos meu pai, que era mais rígido e impunha a disciplina de como as coisas “tinham que ser”.

Tínhamos poucas regras, mas elas deveriam ser seguidas à risca.
Não existia mentira em casa; tínhamos que nos responsabilizar pelos nossos atos; e nós 3, como irmãos, tínhamos que nos cuidar.

Independentemente de certo ou errado, vejo que meus pais se complementavam.

Minha mãe nos estimulava a exercitar o vínculo e meu pai a autonomia.

O que observo é que nenhum de nós três nunca apresentamos vícios, nunca fomos a extremos com consumos ou em revoltas contra os pais e sempre nos mantivemos muito responsáveis em relação a estudos, trabalho, cuidados entre nós.

Chega a chamar a atenção de outras pessoas a forma como nós três seguimos cuidando com muito carinho da nossa mãe e cultivamos uma conversa aberta entre nós sobre como queremos enfrentar as questões pessoais e familiares.

Não foram poucas as vezes que escutei de uma amiga da minha mãe ou de alguém da nossa família uma frase do tipo “nossa, Regina, comé que pode você tão doidinha assim com três filhos tão bons?”.

Essa não é a primeira vez que penso sobre isso, mas com essa nova forma de entender como nos desenvolvemos, fico com a percepção de que, apesar de minha mãe nunca ter seguido nenhuma filosofia pedagógica para educar sua cria, ela sempre nos ofereceu as duas coisas que parecem ser chave para o desenvolvimento de um ser humano: afeto e repertório.

Quando meu irmão mais velho quis jogar tênis ou virar caubói, minha mãe foi lá e apoiou seus movimentos.

Já meu irmão do meio, que era boleiro e nadador, sempre tinha minha mãe levando ele pros treinos, jogos e competições e sendo sua fã número 1. Quando ficava de recuperação, minha mãe estava ao seu lado — não ensinando a matéria, mas dando apoio para ele passar por aquilo.

Eu me interessei por música, comecei a tocar guitarra, quis alisar e pintar o cabelo, gostava de vir pra São Paulo pra ir na Galeria do Rock, experimentei um milhão de esportes — futebol, tênis, tênis de mesa, natação, karatê, capoeira — e lá estava ela, sempre, colocando limites, mas me acompanhando nas experimentações que eu queria ter.

Não podíamos fazer tudo que queríamos. Muitas foram as vezes em que minha mãe foi firme e disse coisas como “não é não” ou “pode ficar aí e chorar o quanto quiser, quando você terminar, vem aqui e a gente conversa”.

Mas para tudo que podíamos fazer, tínhamos seu apoio e atenção em larga escala.

Pra mim isso é uma baita provocação, porque facilmente caio no lugar de
“tem que se alimentar assim”;
“não pode fazer isso”;
“tem que se transportar assado”;
“não pode consumir isso”;
“nem trabalhar com aquilo”.

E por muito tempo neguei a forma como minha mãe nos educou, pois enxergava que ela o fez de maneira pouco “alternativa”.

Quando reconheço a falta que afeto e vínculo fazem, bem como limites claros para estimular nossa autonomia, olho de novo para minha história, pra minha família, pro meu corpo e pra minha musculatura emocional com muita gratidão pelo privilégio que tive e tenho.

Não consigo não achar que minha mãe sabia muito bem o que tava fazendo.
Ela só não tinha lido em lugar nenhum.

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