PRESENÇA É UMA PRÁTICA ANTICAPITALISTA

Ao longo dos anos a prática de presença tem me trazido muito mais satisfação e realização do que as formas que o capitalismo me vende como estratégias para a felicidade.

Fê Chammas
ABRÁÇANA
9 min readMay 12, 2020

--

Clique aqui para escutar a narração desse texto ;)

A lógica capitalista praticamente determina a maneira como levamos nossas vidas na modernidade e recentemente tenho me dado conta de que essa influência deixa sérias marcas não só em nosso psicológico, mas também em nossos corpos. Acredito que a dinâmica moderna de trabalho vs. descanso (e outras análogas) coloca sobre nós uma carga pesadíssima e, para que consigamos carregá-la, perdemos a qualidade da presença em nossos corpos e no momento presente.

Estamos sempre sacrificando algo agora para receber uma recompensa depois ou engajando em uma atividade agora para compensar algo de antes.

O que quero aqui é compartilhar uma percepção de que os comportamentos capitalistas que temos a nível social têm paralelos claros e diretos com nossas dinâmicas corporais e que a presença pode ser uma chave para mudar os desenrolares que nos acometem individual e coletivamente.

DOIS EXTREMOS: SACRIFÍCIO VS. ABANDONO

O que já vivi mais intensamente e ainda vivo em muitos níveis, bem como o que vejo amplamente ao meu redor, é uma lógica de extremos que se aplica a muitas coisas:

Ao longo da semana, trabalha-se demasiadamente, como um sacrifício que precisa ser feito na vida. No fim de semana, enfia-se o pé na jaca, abandona-se qualquer disciplina ou compromisso com regras.

Durante 11 meses do ano, a rotina nos engole. Temos aquele um mesinho de férias para experimentar a sensação de liberdade e realização.

Uma carreira ideal é aquela de muito trabalho ao longo da vida para, na aposentadoria, poder finalmente “relaxar”.

Adultos levam uma vida muito séria, que envolve muitos medos, planejamentos, competição, e quando se permitem qualquer diversão, têm que fazê-lo buscando emoções muito intensas para que consigam sentir algo.

Até a dieta funciona assim: durante a semana, faz-se o esforço torturante de se “manter na linha”. No fim de semana, chuta-se o pau da barraca como uma reação a toda repressão da semana.

O ponto dessa lógica é que oscilamos entre extremos de esforço absurdo e abandono do contato conosco e, ao meu ver, não estamos presentes em nenhum desses dois momentos.

Vivemos muito mais tempo no esforço desgastante do que no relaxamento — por necessidade ou por acreditarmos que é o melhor a se fazer. Quando temos a oportunidade de relaxar, queremos compensar os esforços extremos que fizemos e as estratégias geralmente adotadas pra isso não trazem o descanso nem a presença de que precisamos.

Estar presente significaria entrar em contato com o que sentimos, mas essas em geral são coisas com as quais não sabemos lidar e nem temos o controle para mudar, e isso é claramente muito desafiador.

REFLEXOS DO CAPITAL NO CORPO

Conversando com meu professor de Ayurveda, ele levou a conversa sobre essa dinâmica lá pra origem do capital e como isso afetou nossos corpos.

Acredita-se que o capital apareceu com a revolução agrícola, quando domesticamos plantas e animais e passamos a cultivá-los em espaços delimitados de terra. Junto com isso, apareceu a propriedade privada, a ideia de mérito sobre o que “eu fiz com meu espaço” vs. o que “você deixou de fazer com o teu espaço” e o patriarcado, através das famílias nucleares e da união de famílias que detinham suas posses e as perpetuavam através das próximas gerações.

Foi engraçado que quando ele citou esse tópico, imediatamente me veio na cabeça a imagem de um corpo contraído, rígido, com os braços em frente ao peito, pronto para agir em defesa própria a qualquer momento.

Pra mim, essa é uma imagem que representa bem os resultados da lógica capitalista: vivemos contraídos, rígidos, fazendo esforço para “merecer” ter sucesso, e com os braços em frente ao peito, seja para proteger a nós mesmos e o que é nosso, seja para usá-los para atacar alguém (defesa e ataque são dois lados da mesma moeda).

Me conectei muito com isso porque vivi isso no meu corpo.

Minha decisão de sair do mundo corporativo, deixando pra traz toda a sensação de segurança que ele me oferecia através de salário, plano de saúde, previdência, viagens, status, restaurantes chiques, começou com uma sensação de insatisfação e muito rápido fui parar num lugar de contração, consequente do meu apego a tudo que eu “tinha”.

Eu tinha medo de mudar porque aquilo me dava uma sensação fortíssima de segurança, que apesar do desgaste para me manter no jogo, me permitia momentos de relaxamento completo porque “a vida estava garantida”. Por outro lado, caminhar na direção oposta me forçava a viver incertezas e isso me exigiria dinâmicas psicológicas e corporais que não me foram ensinadas, que minha cultura (moderna, ocidental, capitalista) não vive, não fomenta e, na minha leitura, não consegue sustentar.

Eu não queria me enrijecer para “aguentar o tranco” e terminar numa dinâmica compensatória que usa o dinheiro para compensar todo o mal decorrente do sacrifício e abandono que eu teria que incorporar.

Não queria reproduzir os padrões elitistas de esbanjar algo que se tem muito (dinheiro) para esconder as coisas que faltam.

E eu sabia que existem outras possibilidades que não viver assim.

PRESENÇA RELAXADA

No curso de Abordagem Energética e Emocional do Ayurveda que estou fazendo, temos estudado a ideia de presença relaxada tanto no nível psicológico quanto corporal.

Para vivermos plenamente nossas potências de saúde e expressão é preciso que consigamos habitar nossos corpos e mentes de maneira a nos mantemos presentes, em contato com nossos corpos, atentos ao que nos está passando agora, sem contrairmos a musculatura em demasia. Essa presença exige um tônus específico, tanto mental quanto corporal, que não desperdiça energia.

Esse conceito é bem desafiador pra mim.

Às vezes ele faz todo sentido. Me percebo conectado com a ideia e possíveis caminhos existentes pra essa experiências.
Outras tantas vezes me percebo anos-luz de distância disso e nem entendo exatamente o que isso significa.

Pra mim, presença, foco e atenção, sempre andaram junto com contração.

Quando tenho muito o que fazer, minha tendência (que tenho cuidado) é entrar no modo execução, me enrijecer, e não dar muita margem pra qualquer imprevisto, sem relaxamento que permita acomodar nada além das coisas que tenho que fazer.

Relaxamento, por sua vez, se relaciona com descompromisso.

Sei bem como é estar nesse lugar porque por grande parte da minha vida passei meu tempo livre me largando de coluna torta no sofá em frente à TV, com dificuldade de manter a dieta ou fazer exercícios físicos durante as férias. E ainda hoje me vejo oscilando entre estar muito engajado com algo e, de repente, me frustrar e simplesmente abandoná-lo.

Essa ideia de presença relaxada me remete ao desafio que tenho em ficar longos períodos sentado meditando, sem me mexer. A musculatura debaixo da escápula esquerda e o ombro direito queimam, o joelho esquerdo reclama, as pernas formigam.

Meu corpo não consegue sustentar aquilo por mais de uma hora.

E percebo que não é meramente uma questão de musculatura ou alongamento, pois sei de pessoas muscularmente mais fortes e mais alongadas do que eu que também encontram desafio.

Mais do que simplesmente ser forte, parece que preciso de uma musculatura que seja treinada a sustentar as sensações que tenho no corpo o suficiente para não ter que pará-las — o que no caso significa se levantar ou se mexer, dispersar a atenção e a presença.

O YOGA ME ABRIU AS PORTAS PARA EXERCITAR PRESENÇA

Existem muitas práticas de presença facilmente acessíveis hoje em dia, de muitas tradições diferentes (tibetana, japonesa, chinesa, indiana). A que eu encontrei no meu caminho, que me mostrou a ideia de presença, foi o yoga.

Eu tenho muita tendência à ansiedade. Sou acelerado, expansivo, caio no tédio facilmente e sou orientado a tarefas e à realização de coisas.

Desde que me conheço por gente, roo unha; me apronto rápido e fico esperando os outros; como muito rápido já pensando no próximo prato antes mesmo de terminar o primeiro.

Ou seja, perco a presença muito facilmente.

Encontrei o yoga por acaso, passando na frente de um lugar que oferecia aulas. Entrei porque me chamou atenção a ideia de cuidar do meu corpo.

Encontrei no yoga muito mais do que alongamento e posturas físicas: encontrei uma metodologia para desenvolver e cultivar presença.

O Yoga de Oito Partes de Paranjali oferece um guia através de princípios éticos, observações mentais, práticas físicas, exercícios de respiração e concentração.

Esse guia começa com princípios éticos: yamas e niyamas.

Yamas são restrições que sugere-se cultivar — não-violência, não mentir, não roubar, não dispersar energia sexual e não se apegar.
Niyamas são práticas ativas que sugere-se cultivar — limpeza, contentamento, disciplina, auto-estudo e um fazer não condicionado a resultados específicos.

Pra mim, são como os 10 mandamentos do catolicismo, mas sem as punições cristãs. Através do yoga, me dei conta de que não tem inferno depois da morte, mas sim um desafio aqui e agora. Esses “mandamentos” são exercícios mentais e práticos que podem nos ajudar ao longo desse desafio que é se manter presente.

Quando não cultivo a verdade, parece que sempre estão perto de me descobrirem. Minha mente fica agitada. Quando me apego a querer as coisas da minha maneira, me contraio, faço muita força, e sofro bastante quando percebo que a vida não segue como quero. Se não paro pra me observar, fico repetindo meus padrões e hábitos de comportamento e caindo nas mesmas ciladas emocionais.

Fica explícito pra mim que cada ato e comportamento meu tem um desenrolar em meu corpo.

Cultivar essas práticas éticas sugeridas pelo yoga me dá tônus mental, diminui minha dispersão mental e, consequentemente, me ajuda a estar presente em meu corpo.

As práticas que sucedem as duas primeiras e são beneficiadas por elas são asanas (posturas) e pranayama (exercícios de controle da respiração).

Um asana deve ser firme e confortável.

Firmeza é presença.
Conforto é relaxamento.
E o controle da respiração ancora essa qualidade de presença.

Através da incorporação dessa prática, tenho aprendido muito sobre meus mecanismos de fuga quando não consigo sustentar estar presente.

Roo unhas assistindo a filmes tensos, esperando uma resposta, devaneando sobre como fazer algo — todas situações em que minha mente vai embora, sai do agora.

Contraio meu abdome e impeço o fluir da minha respiração quando estou preocupado com algo importante que tenho que fazer, quando me mantenho acordado mesmo com sono ou em situações que me deixam eufórico — portanto, sempre que fico ansioso.

Tento ancorar minha atenção em qualquer coisa externa, tipo comer e redes sociais, quando quero fugir do tédio ou quando a ideia do que tenho que fazer me sobrecarrega mentalmente.

A prática de yoga tem me ensinado a usar esses momentos como convites para voltar a estar presente.

O que tô precisando mesmo agora e o quais são as coisas que estão a meu alcance para cuidar disso?

PRESENÇA COMO PRÁTICA ANTICAPITALISTA

Praticar yamas e niyamas não custa nada.
Mexer o corpo e trazer a atenção para nossa respiração tampouco.

A todo momento podemos nos observar e colocar em prática o exercício de estarmos presentes em nossos corpos.

Quando estou presente, afio minha percepção sobre as sensações que estão se passando em meu corpo e tenho mais capacidade de escolha sobre como quero e vou responder a elas.

Posso escolher não comprar algo para tentar me livrar de uma tristeza.
Posso escolher não comer algo para tapar o buraco de uma frustração.
Posso escolher não encher a cara para “esquecer os problemas” e, ao invés, olhar para eles para entender o que querem me dizer sobre como posso me cuidar melhor.
Posso escolher não consumir como estratégia para não ser consumido por mim mesmo.

O sistema capitalista cria situações diversas de acesso a recursos, chegando a extremos sem cuidados a necessidades básicas como alimento, moradia, higiene. Nunca vivi essas privações, então não sei como funcionaria nessas situações e meu intuito com essas reflexões não é colocá-las como um caminho único ou como algo que todo mundo deve fazer.

Ao longo dos meus anos de prática de yoga como uma prática constante de auto-observação e escuta, tenho constatado como essa prática me ajuda a quebrar os ciclos automáticos de reprodução do sistema capitalista e dessa forma não-presente de habitar meu corpo.

Acredito que todas as pessoas têm a possibilidade, através de seus corpos, de exercitar essa presença — através de uma respiração consciente, deixando um choro emergir, mantendo o silêncio para acompanhar o movimento de um frio na barriga.

Ao longo desses anos, ainda que seja muito desafiadora, a prática de presença tem me trazido muito mais satisfação e realização do que as formas que o capitalismo me vende como estratégias para a felicidade.

E a boa notícia é que, diferente das práticas capitalistas, estar presente segue sendo grátis.

--

--