QUANDO EU MORRER, ME COMPOSTEM!

Escrevo para registrar que quando eu morrer, eu quero que meu corpo seja compostado, transformado em terra fértil e distribuído pra ser absorvido por plantas.

Fê Chammas
ABRÁÇANA
5 min readMar 6, 2020

--

Faz um bom tempo já que caiu minha ficha de que, quando eu morrer, quero que meu corpo, que será meu derradeiro resíduo orgânico, volte pra terra.

Quando comecei a pensar nisso, minha ideia foi:

cavem um buraco de 1 metro e meio de profundidade, 2 metros de comprimento e uns 80 centímetros de largura, coloquem meu corpo lá peladinho, tampem com terra e plantem umas hortaliças e ramas em cima.

Achei massa a ideia de fertilizar as abóboras e as rúculas e as couves e os tomares que meus entes queridos comeriam. Meus nutrientes seguiriam vivos neles de uma maneira bem direta.

Essa empolgação durou pouco, só até eu descobrir que existem leis que proíbem enterrar um corpo direto na terra.

Como assim a gente não pode voltar pra terra, de onde literalmente viemos?

Que merda de sistema é esse que permite que os rejeitos de mineração voltem pra terra (vide os desastres recentes da Vale), mas não um corpo humano?

Entrei no site da prefeitura de São Paulo e eles nem consideram outra possibilidade que não o sepultamento num cemitério ou a cremação.

Fiquei indignado.

Mas pesquisando um pouco mais, entendi que um corpo enterrado diretamente na terra tem grandes chances de não receber as condições ideias para a decomposição completa e saudável de toda a massa (como a falta de oxigênio ou o desequilíbrio entre carbono e nitrogênio), e portanto é possível que o chorume (que na verdade é uma bomba super concentrada de nutrientes), se espalhe pela terra e atinja o lençol freático, contaminando a água e todo seu curso.

Me deparei também com esse vidinho que fala sobre como “os micro-organismos que atacam os tecidos são capazes de produzir mais de 400 compostos químicos e gases".

O que acontece ao seu corpo depois que você morre?

Mas achei bem interessante sobre como a matéria em que achei esse vídeo fala que o copo se torna uma “máquina tóxica” no processo de decomposição.

Que percepção é essa de que um processo natural de decomposição, que acontece com todos os seres, é algo tão perigoso?

Fiquei pensando sobre como essa situação de morte se encaixa na história de não conseguirmos lidar com os “restos e finais” das coisas.

Temos nojinho e não cuidamos do destino do nosso cocô ou xixi. Banheiro seco ou xixi na árvore não pode, mas pode cagar e mijar na água e mandá-la pra longe (de mim) e poluir tudo que é rio aqui de São Paulo.

Como sociedade, somos extremamente negligentes com o encaminhamento de tudo que consumimos — eletrônicos, plásticos, papéis, etc. O discurso de que as coisas são recicláveis só piora as coisas, aliviando a consciência dos consumidores sem necessariamente reduzir o consumo.

E os restos industriais seguem destruindo os ecossistemas, vide os crimes de Mariana e Brumadinho.

Com a morte não seria diferente.

Como cultura — brasileira e ocidental — , mal conseguimos sustentar uma conversa sobre a morte. Quanto mais cuidar de maneira adequada, com atenção e consciência, dos resíduos que ela gera.

Seria assustador demais manusear ou lidar com algo que nos lembra tão fortemente de nossa finitude.

Mas, indo um pouco mais fundo, suspeito que o medo que temos de falar ou lidar com a morte é porque, com nossa finitude sendo esfregada em nossa cara, somos obrigados a olhar para o que estamos fazendo da nossa vida.

E isso dá trabalho, principalmente numa era em que se vive "na correria, né".

Recentemente li o livro “A Morte É Um Dia Que Vale A Pena Viver”, da Ana Cláudia Quintana Arantes, médica brasileira que trabalha com cuidados paliativos, tema sobre o qual ela levanta a bandeira e aponta sobre sua precariedade nos cuidados de saúde no Brasil.

Entre muitas reflexões incríveis que o livro traz, ela diz que “enquanto as pessoas não olharem para a morte com honestidade e perguntar a ela o que há de mais importante sobre a vida, ninguém terá a chance de saber a resposta".

E acho que cuidar dos corpos humanos depois que eles morrem faz parte desse processo de “olhar para a morte com honestidade”.

Semana passada minha namorada me mandou um link dizendo “acho que cê vai gostar disso”.

Era uma matéria sobre a Recompose, uma empresa norte-americana, de Seattle, que aparentemente é a primeira do mundo a trabalhar com compostagem humana, agora que Washington é o primeiro estado estadunidense a legalizar essa prática.

A fundadora, Katrina Spade, desenvolveu, com mais uma galera, um processo ideal de compostagem em que o corpo fica num reservatório fechado, com terra, é coberto por palha, alfafa e lascas de madeira, recebe o arejamento adequado e, entre 3 e 7 semanas, tudo é transformado em adubo, inclusive ossos e dentes.

Os familiares podem escolher ou não levar o resultado desse processo, mas de qualquer forma ele vai voltar a alimentar plantas.

O processo é mais ecológico que o sepultamento tradicional, que exige caixão, estrutura de túmulos e muito espaço de cemitério; e que a cremação, que exige bastante recurso energético e estrutura para transformar o corpo em cinzas.

Mas a ideia vai além da ecologia e se expande para um desejo de mudar a cultura, falando mais sobre a morte para melhorar a forma como vivemos e cuidar de maneira mais saudável dos que estão morrendo e dos que perdem entes queridos.

Enfim, fiquei louco com a iniciativa, já li muitas reportagens e ouvi entrevistas sobre, e ando sonhando com possibilidades de fazer isso no Brasil.

Apesar de achar que há aí a oportunidade de fazer algo importante, não tô entrando de cabeça para estruturar isso porque sei o trabalho que daria fazer pesquisas, tentar avançar a pauta na política, conscientizar as pessoas…

Mas conversando com uma amiga, ela falou que o Zoológico de São Paulo já composta os corpos de todos os animais que morrem lá, mas essa informação fica meio escondida porque há muito conservadorismo em torno do assunto e a sociedade poderia se assustar.

Isso poderia ser de grande apoio na difusão da ideia publicamente (inclusive, a ideia da fundadora do Recompose veio ao saber do processo de compostagem dos animais que morriam na área rural).

Essa amiga também também me deu a ideia de que o movimento todo pode começar com as pessoas manifestando publicamente seu interesse em serem compostadas quando morrerem. Talvez isso comece a introduzir o assunto em diferentes círculos, gere alguma reflexão e seja uma primeira faísca pro movimento.

Então cá estou eu, escrevendo para registrar:

quando eu morrer, eu quero ser compostado.

E quero dizer que vou ficar bem feliz em oferecer meu corpo como um último presente à terra, que me cuidou durante todo o período em que estive vivo.

--

--