REFLEXÕES SOBRE O MACHISMO A NÍVEIS PESSOAL E COLETIVO

ME PARECE QUE, SOCIALMENTE, VIVEMOS DESAFIOS SEMELHANTES AOS QUE ENFRENTO NO NÍVEL INDIVIDUAL.

Fê Chammas
ABRÁÇANA
9 min readApr 22, 2020

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Rio Pinheiros: poluído, canalizado, descuidado. Vítima do machismo a nível social.
Texto a seguir entoado pelo autor ;)

Tenho acessado de novo e de novo a ideia de que nós, como sociedade extremamente patriarcal, sofremos de desafios semelhantes aos meus em relação ao machismo.

Percebo que cresci sem referências de homens responsáveis e cheguei à vida adulta incorporando as consequências disso — como um menino mimado, incapaz e irresponsável.

Conforme amadureço, tem sido muito doloroso perceber esses traços em mim e ainda mais desafiador trabalhar pra desorganizar meus hábitos, e ando bem feliz com o caminho e os aprendizados.

Tenho percebido também o quanto esse processo individual acontece a meu redor, em pessoas próximas e a nível social, e como as consequências desse masculino irresponsável caminham juntas da destruição ecológica que temos imposto ao mundo.

É dessas coisas que quero falar aqui.

SEM REFERÊNCIA

Pessoalmente, posso dizer com tranquilidade que ao longo da minha educação eu tive pouquíssimas referências de comportamentos responsáveis por parte de homens adultos.

Não aprendi a faxinar a casa, a cozinhar, a lavar louça ou roupa.
Sempre tive isso feito por alguma mulher, fosse minha mãe ou a faxineira.

Cresci com o desafio de ser mulherengo, mesmo não me sentindo confortável. Isso vinha do meu pai, dos meus irmãos, dos meus amigos e de seus pais.

Sobre sexo, ninguém nunca me ensinou nada além de “coloca camisinha porque não é pra fazer filho”. E eu, que sempre me recusei a ter relação com uma prostituta, me achava inadequado por não ter perdido a virgindade até os 18 anos.

Essa lista pode ir longe, mas o ponto é que não ter o cuidado de homens que se responsabilizam me afetaram quando cheguei à vida adulta e vejo que afeta a muitos ao meu redor.

Essas características vem se perpetuando ao longo do tempo, afinal, de geração em geração, o homem, que cresceu sem referências suficientes de responsabilidade, se constitui irresponsável e vai educando e criando novos homens irresponsáveis. E, como a nossa sociedade é patriarcal, acaba que essas características incidem amplamente nas pessoas, inclusive em mulheres.

VAZIO E ANSIEDADE

Como adolescente, eu não precisava me preocupar com nada além de me divertir com amigos e fazer o mínimo na escola. A casa tava limpa, a comida tava pronta na mesa, a louça lavada, a roupa passada.

Toda minha energia se voltava ao desfrute e eu podia fazê-lo com intensidade.

Consequentemente, o aspecto de diversão e emoções intensas da vida recebia uma proporção muito grande da minha atenção e ganhava muita importância.

Através da minha experiência e das de alguns homens próximos de mim, identifico duas grandes coisas que podem acontecer ao entrarmos na vida adulta:

ou nos esforçamos muito para manter essa vida social ativa, de recompensas emocionais e diversão intensa;

ou toparmos de frente com um vazio, quando essa vida social diminui de intensidade ou já não faz mais sentido pra nós.

O que vejo ao meu redor é uma sociedade que, a grosso modo, escolhe o desafio de manter altos níveis de desfrute e acaba por topar de frente com muita ansiedade, frustração, insatisfação, e isso pra mim tá relacionado aos altos índices atuais de doenças psicossomáticas bem como com a intensidade e frequência do consumo de alteradores de consciência.

Faz anos que topei de frente com esse vazio e me senti muito perdido, sem saber o que fazer, e tô, desde então, buscando aprender a como lidar com ele.

As reflexões desse texto são partes desse processo.

UM MASCULINO INFANTIL E MIMADO

Citei algumas coisas anteriormente que deixam claro isso.

Cheguei — e, pra mim, a grande maioria dos homens também — à fase adulta sendo ainda uma criança mimada.

Nós, homens, nos tornamos adultos incapazes de limpar a sujeira que fazemos. E isso incide em todos os níveis.

Não limpamos nossa casa.
Não cuidamos dos nossos resíduos — tanto que os chamamos de “lixo”, uma palavra que identifica recursos não-utilizados.
Não cozinhamos nossa própria comida e tampouco nos importamos com as condições e consequências da maneira como nosso alimento é produzido.

Basicamente como uma criança mimada, que tirou todos seus brinquedos da prateleira porque queria brincar com todos e, quando viu, não dava conta de organizar tudo aquilo.

Alguns podem dizer: não limpo a casa ou não cozinho ou não cuido da origem do meu alimento porque trabalho o dia todo e não tenho tempo pra isso.

O ponto a ser problematizado é exatamente esse, de acharmos que limpar nossa própria sujeira é menos importante que o trabalho economicamente importante que fazemos*.

*Na minha cabeça, isso se aplica principalmente à elite socioeconômica, mas também aos que aspiram por ser parte dessa elite.

Quando escuto isso, lembro de mim mesmo adolescente, que jamais consideraria deixar de ir “dar rolê ca galera” pra ficar arrumando meu quarto ou limpando a casa.

Fominismo, da francesa Nora Bouazzouni

No livro Fominismo, Nora Bouazzouni fala sobre a diferença entre o tempo de homens e mulheres em trabalhos domésticos e trabalhos remunerados.

"Esse trabalho doméstico invisível (executado pelas mulheres), se fosse remunerado, representaria 'uma produção de riqueza avaliada em 635 bilhões de euros, ou 33% do PIB' francês."

UM MASCULINO INCAPAZ

Esse masculino infantil incide em adultos incapazes. Adultos que não sabem fazer o básico para a manutenção de suas próprias vidas.

Uma criança faz o quê pra resolver seus problemas?
Chama a mamãe.

Isso acontece literal e metaforicamente.
Pra nos acudir, chamamos a mãe, uma faxineira ou a namorada/companheira/esposa.

De qualquer maneira, chamamos sempre uma mulher.

Recentemente, um amigo soltou a seguinte pergunta num grupo de WhatsApp:

“Vocês acham que nós, homens, quando ficamos doentes (gripes, resfriados ou lesão no corpo) ficamos MUITO fragilizados e quase nos tornamos uns filhos pras nossas companheiras?”

Ele perguntou pois disse ter ouvido várias mulheres relatando esse comportamento.

Alguns assumiram que se tornam bebezões, outros se disseram dramáticos. Todos concordamos que isso acontece.

Pra mim, isso acontece exatamente porque, ao longo da vida, não precisamos suportar a carga que o “cuidar” exerce e, portanto, somos muito menos tolerantes à dor que as mulheres. Aí, com qualquer condição atípica, precisamos logo correr para os braços de uma mamãe.

A nível social, correlaciono isso com as condições das grandes empresas ou da elite socioeconômica, cheios de mamata, que vivem às custas do trabalho dos outros ou “fazendo o dinheiro trabalhar pra si” e, com qualquer imprevisto ou perda de privilégio, se colocam no lugar de vítimas, fazendo o maior drama.

POR FIM, UM MASCULINO IRRESPONSÁVEL

Um homem que é infantil e incapaz é irresponsável.

A nível pessoal, terceirizamos nossas responsabilidades sempre que possível. É cultural.

Por parte dos homens, isso acontece chamando as variações das “mães”, como falei anteriormente. Mas há também outras maneiras, que aparecem independentemente do gênero da pessoa.

Comemos carne, mas não estamos dispostos a fazer o trabalho sujo de matar um animal. No caso dos donos do agronegócio, que se relacionam com isso, não há preocupação com a poluição dos rios, dos ares ou com o desmatamento em que a prática implica.

Queremos a praticidade de receber as coisas por delivery em casa, mas não nos importamos com as condições de trabalho das pessoas envolvidas nesse processo (ver matéria sobre funcionários da Amazon e Greg News sobre delivery).

Queremos consumir de maneira infinita e manter nosso próprio espaço privado limpo, mas não nos responsabilizamos pelo cuidado dos resíduos que chamamos de lixo, submetendo pessoas a esse trabalho e estigmatizando-as.

Queremos a conveniência de mandar o xixi e o cocô embora, mas poucos sequer se perguntam o que acontece com eles e “o governo que cuide”.

Num nível mais extremo, queremos transar e fazemos filhos, mas alguém de cuide dessas crianças, pois não podemos parar nossa vida, nosso desenvolvimento ou nossa carreira para dedicar atenção a isso.

A essa altura, acredito que não preciso nem dizer como isso incide a nível social, né? Acho que as situações que listei nesse ponto já são suficiente para entendermos como as instituições privadas e estatais replicam esse mesmo padrão de comportamento.

Acaba que, pra se tornar adulto e responsável, a sociedade não exige que aprendamos a cuidar, mas sim a ter dinheiro para pagar por cuidado. É o que fazemos coletivamente.

Acontece que dinheiro não compra afeto, não constrói relações de interdependência e, portanto, não é sinônimo de cuidado nem de responsabilidade.

COLETIVAMENTE, TRATAMOS A TERRA COMO TRATAMOS AS MÃES

No fim das contas, não consigo não relacionar todos esses pontos com as questões ecológicas de nossa época (sim, podem me chamar de enviesado).

O que listei aqui é que, basicamente, o homem não tem uma autonomia saudável, não é capaz de exercer cuidado e terceiriza pra outras pessoas limparem sua sujeira (a nível pessoal e coletivo).

Uma conversa que tive recentemente aqui em casa ilustra bem isso.
Estávamos falando sobre como a lógica de não compostar nossos resíduos orgânicos é a mesma que faz com que as mães fiquem sobrecarregadas e descuidadas em nossa sociedade.

Distante essas duas situações? Explico.

A terra nos provê alimento e as agricultoras (em grande parte mulheres e de agricultura familiar, pois o agronegócio produz para alimentar negócios, não pessoas) cuidam para que isso aconteça. Hoje em dia o alimento viaja por longas distâncias para chegar aos centros urbanos e alimentar as centenas de milhares de bocas que dependem dele.
Os resíduos que geramos a partir desses alimentos, atualmente, a nível social, se tornam lixo e o fato é que não cuidamos nada desse processo.

Como crianças mimadas, queremos o alimento que queremos, mesmo que fora da estação ou que produzido em lugares muito distantes, mesmo que isso implique em degradação ambiental.

Como adultos incapazes, não cuidamos da produção desses alimentos (eu inclusive), pois temos “coisas mais importantes para fazer”, e submetemos outras pessoas a essa tarefa sem valorizá-las.

Como seres irresponsáveis, não damos ouvidos ao que essa terra, que produz nosso alimento, precisa. Não damos atenção para quanto tempo ela precisa, nem para entender qual seu limite de produção.

Queremos que ela nos nutra, já, à nossa maneira, e ai dela se não o fizer. Nesse caso, vamos arranjar maneiras de esmagá-la ainda mais e culpabilizá-la por algo pelo que nós, cada pessoa da sociedade, somos responsáveis.

Tenho o privilégio de viver e aprender muito com duas mães* que vivem sem os pais das crianças aqui em casa e, pra mim, essa situação ecológica é idêntica à que submetemos as mães da nossa sociedade.
*As situações abaixo não representam necessariamente suas realidades, mas aprendo sobre o tema com elas.

As mulheres não conseguem fazer filhos sozinhas, sem homens, mas de acordo com dados do IBGE de 2015 há 11,6 milhões de famílias de mãe solo. (Notem que "homem sem cônjugue com filhos" nem aparece no gráfico de comparação da matéria).

Grande parte dos pais que dão financeiro, muitas vezes ao serem obrigados pela justiça, ainda podem praticar abandono intelectual ou afetivo (como descreve essa matéria). Não se prontificam a dar seu tempo, atenção e energia ao cuidado da criança, e terceirizam isso através de recurso financeiro.

Essa falta de cuidado é estimulada legalmente: pela lei no Brasil, enquanto a mulher tem 120 dias de licença maternidade (o que dá somente 4 meses e já a obriga a voltar ao trabalho), um homem tem somente 5 dias úteis de férias quando tem um filho. Portanto, recai sobre a mulher a responsabilidade de cuidar da criança desde que nasce sem apoio equitativo do pai.

Não é à toa que é recorrente ver mães, que cuidam dos filhos em período integral, no dia-a-dia, quando dão pequenos deslizes, serem taxadas como péssimas mães. Enquanto pais, que não estão no dia-a-dia, quando fazem uma mínima coisa que não era mais que sua obrigação, são vangloriados como ótimos pais.

Citando novamente o livro Fominismo,

"Mas esse serviço (cuidados domésticos e dos filhos, executado pelas mulheres) está longe de ser considerado como um verdadeiro trabalho, é normal cuidar de tudo quando se é mulher. (…) Então, para cada mulher cujo trabalho diário de fazer comida é banalizado, para cada mulher culpabilizada quando ela ousa esquentar um prato pronto ou uma comida industrializada, (…) há um homem que é aplaudido domingo, durante o verão, pela proeza de acender uma churrasqueira e assar doze linguiças."

Essa situação não se parece com como cuidamos da natureza?

O sistema capitalista, de crescimento econômico infinito, e sua elite — aqui representando os homens, — esculacham a terra sem vergonha nem preocupação com nosso consumo ou com as implicações do chamado desenvolvimento econômico, enquanto trabalhadores rurais, povos indígenas e tradicionais e defensores da terra — aqui no papel das mães — tem suas culturas atropeladas, seus direitos esmagados e seus entes presos ou mortos (o Brasil bateu o recorde de lideranças indígenas mortas em 2019).

Cenário típico de homens irresponsáveis.

O cuidado que seria adequado às mães e aos ecossistemas dos quais dependemos é característico de posturas responsáveis e, claramente, não estamos aptos como indivíduos e como sociedade a oferecê-los no momento presente.

RESPONSABILIDADE COMO RESPOSTA AO PATRIARCADO E À CRISE ECOLÓGICA.

Falei, falei, e não sei bem como terminar esse texto.

Acho que o que fica pra mim é a importância de desenvolvermos responsabilidade — principalmente os homens — e atuarmos em nosso entorno com o devido cuidado, aprendendo a abrir mão de nossos privilégios e comodismos, e abrindo a escuta para aprender como ajudar.

Talvez assim consigamos agir mais perto da origem de todo esse processo que ganha dimensões globais e me assusta, tanto a nível pessoal como a nível coletivo.

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