SOBRE HONRAR MINHAS DORES

SENTÍ-LAS POR INTEIRO E SEGUIR EM FRENTE

Fê Chammas
ABRÁÇANA
6 min readNov 21, 2019

--

A menos de uma semana voltei de um treinamento no Trabalho Que Reconecta (TQR), um trabalho desenvolvido por Joanna Macy há mais de 40 anos com a finalidade de nos ajudar a lidar com as emoções fortes que estamos vivendo em nosso tempo em decorrência do colapso ecológico ao qual estamos submetendo o planeta e, consequentemente, a vida humana na terra.

O TQR parte da percepção de que atualmente vivemos numa Sociedade de Crescimento Industrial, um sistema de crenças e práticas que, entre outras coisas, criam separação entre os humanos e a terra, entre um humano e outro, entre os humanos e outros animais; e estimula uma mentalidade utilitária de tudo que é natureza — inclusive de nós mesmos e das pessoas ao nosso redor.

Alguns dos sintomas recorrentes deste sistema, que tem alta incidência atualmente, são: distância de ambientes naturais e selvagens, que são percebidos como hostis; perda do valor intrínseco do ser humano, que passa a precisar se destacar em algum “papel” para ser reconhecido; e a perda de integridade emocional e psicológica, acarretando em enfermidades como crises de ansiedade, de pânico e depressão.

Quando me abri pra essas percepções há alguns anos, percebi que sentia muita dor, luto, indignação, desespero.

O treinamento me trouxe um entendimento mais profundo sobre percepções que já me habitavam, mas o que quero compartilhar aqui é um sonho muito simbólico que tive ao logo dos dias em que estive imerso e as reflexões subsequentes.

Eu estava em casa, que era diferente da minha casa real, mas também era coletiva. Uns caras tocaram o interfone, eu abri o portão e eles entraram. Foram descendo pra garagem e eu senti medo do que ia acontecer, porque disseram que vinham fazer alguma manutenção e vi eles falando outra coisa e indo pra outro lado.

Olhei pro mermão e tentei alertá-lo: Rafa, véi, os cara vão fazer merda. Ele não me respondia, continuava fazendo as coisas normalmente.

Os caras nos sequestraram.

Tiraram nossas comunicações. Era curioso que eles não estavam roubando coisas de valor tipo eletrônicos, pois eu via meu computador na nossa frente e eles não fizeram nada. Eles tampouco batiam na gente, não estavam sendo fisicamente violentos.
Eu ainda estava com meu celular na mão e querendo chamar a polícia, mas com medo de me verem. Ficamos presos.

Não lembro exatamente o que aconteceu, mas a seguinte cena de que me lembro já é de noite, estamos com minha mãe, tios, em casa, e tá todo mundo tranquilo. Ninguém parece traumatizado, parece que o sequestro nem aconteceu.

Eu fico meio indignado e pergunto pro Rafa: mano, os sequestradores não vão voltar? Cê contou pra mãe? Ela não tá sabendo? E ele me responde tentando me acalmar tipo “não, cara, tá tudo resolvido, não tem problema nenhum”.

Fico confuso.
Acordo.

No dia seguinte, fiquei com o sonho na cabeça, tentando entender. Até que me caíram algumas fichas.

EU ME SINTO COMO NO SONHO

Em relação ao colapso ecológico, eu me sinto como no sonho.

Parece que tô percebendo a merda, tô tentando avisar as pessoas mais próximas de mim, que no sonho são representadas pelo meu irmão, que parece não se importar com meu aviso.

Meus queridos seguem seus “negócios como de costume”, como se nada estivesse fora do lugar. Segue a publicidade, segue a compra de roupas, segue o consumo de combustíveis fósseis, segue a busca incessante por recursos financeiros para garantir o conforto dos amados, mesmo que essa atuação coletiva nos leve ao colapso geral.

Me sinto sozinho, não escutado.

ESTAMOS SEQUESTRADOS PELO SISTEMA

O sistema da Sociedade de Crescimento Industrial nos tem reféns: ou operamos como ele quer, ou vai ser bem difícil sobreviver — tanto fisiológica quanto emocionalmente.

Moradia é cara.
Comida é cara.
Transporte é caro.
Estudar é caro.
Se divertir é caro.
Relaxar é caro.

Dedicamos muito tempo a ganhar o dinheiro para bancar estas coisas.

Aí temos pouco tempo pra cuidar das coisas básicas da vida, como descanso, limpeza, comida, cuidado dos filhos. Então terceirizamos tudo isso, o que torna a vida ainda mais cara.

Esse sistema nos diz que não há garantias de nada.
Precisamos cuidar do nosso bem-estar e da nossa família, porque ninguém mais se importa com isso, e parece que a forma mais segura de fazer isso é acumulando dinheiro.

Se quisermos construir uma outra possibilidade, é bom que tenhamos muita estrutura emocional, pois a princípio, há grandes chances de nos sentirmos ilhados, solitários e nadando contra a maré.

Mesmo fazendo muitos movimentos para mudar minha forma de ser e estar, isso ainda me sufoca. E parece que vai seguir assim por um bom tempo.

PARECE QUE NÃO TEM VIOLÊNCIA

O sequestro que aconteceu no meu sonho parecia não ser violento.
Os sequestradores não nos bateram, não nos roubaram, não nos amarraram e nem estavam apontando armas pra nós.

Mas eu estava apavorado.

Como estive e vira e mexe fico na vida real.
E sei que muitos dos meus queridos também.

A maneira como temos vivido nossa vida moderna parece normal porque nós a normalizamos.

“É assim mesmo, tem que passar 2 horas no trânsito e trabalhar 12 horas por dia para pagar as contas”.

“Não dá, vou ter que contratar uma babá pra cuidar do meu filho”.

“Que cê quer que eu faça? Tenho que pagar a escola que custa milhares de reais por mês.”

Tudo isso que pode vir a parecer normal me parece de uma violência extrema aos corpos e aos psicológicos de nós humanos. Viver na tensão de se provar no trabalho, com a obrigação de ganhar cada vez mais dinheiro, na eminência de alguém te passar pra trás nos mantém em um estado de estresse que traz consequências seríssimas à nossa saúde.

“NÃO TEM PROBLEMA NENHUM”

Foi o que meu irmão me disse no sonho.
E, de fato, pelo que eu via (e vejo) da minha família, tudo parecia seguir normal.

Mas ainda que tudo pareça normal no sistema em que vivemos, recentemente eu descobri que uma das pessoas que mais amo no mundo teve duas crises de pânico no trabalho.

DUAS!!!

Porque não sabia se ia dar conta de tudo que estavam demandando.
E ela não foi a primeira do meu círculo próximo.

Eu sei que ela faz isso na melhor das intenções de cuidar de si, da sua família, do futuro. De se perceber útil, produtivo, de se sentir capaz.

Mas saber essa informação me destroçou por dentro.

Me deu um gelado, uma desesperança profunda.
Um medo de que suas condições psicológicas e emocionais fiquem comprometidas, medo de vê-la sofrer, de ter um colapso nervoso ou entrar em depressão.

E eu me sinto triste quando constato que eu, sozinho, não consigo ajudar.
Triste porque gostaria de vê-la melhor e porque, em última instância, ajudá-la significa ajudar a mim mesmo.

Não é que eu tenha a solução, mas pra mim tá bem claro que esse sistema no qual vivemos aprisiona nossas percepções a ponto disso tudo parecer normal.

Pra mim, não é.

UM CAMINHO: MEGULHAR NAS PROFUNDEZAS DAS EMOÇÕES QUE SENTIMOS

Parte do que o TQR propõe é que não devo fugir ou evadir das emoções escuras que tenho. Elas são parte de mim, podem me ajudar a descobrir e perceber muito sobre mim e sobre o mundo.

Pra mim já tá claro que encará-las de frente, vivendo todo seu ciclo, garante que elas não fiquem alojadas no meu corpo e no meu psicológico, aliviando o peso que carrego.

Tenho aprendido que não é vergonha nenhuma ficar triste e chorar copiosamente. Ter medo e se apavorar por um tempo. Ter raiva e explodir com essa energia.

Pelo contrário, isso tem sido um remédio e tanto para minha sanidade física, mental e emocional quando para a saúde das minhas relações.

Pra isso, o TQR coloca como crucial que eu siga conectado com as coisas que aprecio, as coisas pelas quais sou grato, pois isso me mantem ancorado, me ajuda a não me perder nas profundezas de minhas tristezas, medos e raivas.

Mesmo em momentos de colapso, há muito pelo que ser grato.
Principalmente quando percebo que minha existência, que talvez chegue a 100 anos, é bem pequena perto dos 4.6 bilhões de anos que tem o organismo Terra do qual sou parte.

Não coincidentemente, o contato direto e a integração com o mundo natural selvagem tem sido um dos meus grandes aliados e mestres nesse processo.
A natureza tem o conhecimento para me ensinar sobre meu papel no mundo, sobre calma, sobre relações e, em essência, sobre amor.

E eu, que sou natureza, também sei de tudo isso.

Conectado com essa gratidão genuína e mergulhando nas profundezas do que sinto, tenho tentado enxergar a vida com novos olhos, como propõe o Trabalho Que Reconecta.

Olhares mais expandidos, mais interdependentes, que também integram, além de separar, como estou acostumado.

Esse é meu momento, minha busca atual. E parece que vai ser a busca de toda essa vida.
Sigo em frente.

--

--